O socialismo e o homem em Cuba – Che Guevara

Texto escrito em 12 de março de 1965 sob a forma de carta para Carlos Quijano, editor do semanário Marcha, publicado em Montevideu (Uruguai).
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Estimado companheiro:

Termino estas notas durante minha viagem pela África, animado pelo desejo de cumprir, ainda que tardiamente, minha promessa. Gostaria de fazê-lo desenvolvendo o tema do título. Penso que pode ser interessante para os leitores do Uruguai.

É comum ouvir da boca dos porta-vozes do capitalismo, como um argumento na luta ideológica contra o socialismo, a afirmação de que este sistema social, ou o período de construção do socialismo que estamos atualmente vivendo, se caracteriza pela abolição do indivíduo no altar do Estado. Não tentarei refutar esta afirmação a partir de uma base meramente teórica, mas sim estabelecer os fatos tal como acontecem em Cuba e acrescentar comentários de caráter geral. Primeiro, esboçarei em pinceladas gerais a história de nossa luta revolucionária antes e depois da tomada do poder.

Como se sabe, a data exata em que se iniciaram as ações revolucionárias que culminaram com o 1º de janeiro de 1959 foi 26 de julho de 1953. Um grupo de homens dirigidos por Fidel Castro atacou na madrugada desse dia o quartel Moncada, na província de Oriente. O ataque foi um fracasso, o fracasso se transformou em desastre e os sobreviventes foram parar na prisão, para reiniciar, logo depois de terem sido anistiados, a luta revolucionária.

Durante esse processo, no qual existiam apenas germes de socialismo, o homem era um fator fundamental. Nele se confiava, era individualizado, específico, com nome e sobrenome, e o triunfo ou o fracasso da ação empreendida dependia da sua própria capacidade de ação.

Chegou a etapa da luta guerrilheira. Esta se desenvolveu em dois ambientes diferentes: o povo, massa ainda adormecida que precisava ser mobilizada, e sua vanguarda, a guerrilha, motor impulsor da mobilização, gerador de consciência revolucionária e de entusiasmo combativo. Essa vanguarda foi o agente catalisador, aquele que criou as condições subjetivas necessárias à vitória. Também na vanguarda, no marco do processo de proletarização do nosso pensamento, da revolução que se processava em nossos hábitos e nossas mentes, o indivíduo foi o fator fundamental. Cada um dos combatentes da Sierra Maestra que alcançou algum grau superior nas forças revolucionárias tem em sua conta uma história de realizações notáveis. Era em função dessas realizações que conseguia seus galões.

Foi a primeira época heroica, na qual se disputavam para conseguir um cargo de maior responsabilidade, de maior perigo, sem outra satisfação que a do cumprimento do dever. Em nosso trabalho de educação revolucionária, voltamos frequentemente a esse tema instrutivo. Na atitude dos nossos combatentes, vislumbra-se o homem do futuro.

Em outras oportunidades na nossa história se repetiu o fato da entrega total à causa revolucionária. Durante a Crise de Outubro ou durante os dias do furacão Flora, vimos atos de valor e de sacrifícios excepcionais realizados por um povo inteiro. Uma das nossas tarefas fundamentais do ponto de vista ideológico é a de encontrar a fórmula para perpetuar essa atitude heroica na vida cotidiana.

Em janeiro de 1959, foi estabelecido o governo revolucionário com a participação de vários membros da burguesia entreguista. A presença do exército rebelde constituía a garantia do poder como fator fundamental de força.

Em seguida, ocorreram contradições sérias, resolvidas em primeira instância em fevereiro de 1959, quando Fidel Castro assumiu a chefia do governo, com o cargo de primeiro-ministro. O processo culminava com a renúncia do presidente Urrutia diante da pressão das massas, em julho do mesmo ano.

Naquele momento, aparecia na história da Revolução Cubana, com características bem nítidas, um personagem que se repetirá sistematicamente: a massa.

Esse personagem de múltiplas facetas não é, como se pretende, a soma de elementos de uma mesma categoria (reduzidos, aliás, a uma mesma categoria por imposição do sistema), que atua como um manso rebanho. É verdade que segue seus dirigentes sem vacilar, fundamentalmente a Fidel Castro; mas o grau dessa confiança que ele conquistou está em função precisamente da interpretação cabal dos desejos do povo, de suas aspirações e da luta sincera que ele travou para o cumprimento das promessas feitas.

A massa participou na Reforma Agrária e no difícil empenho de administrar as empresas estatais; passou pela experiência heroica da Baía dos Porcos; forjou-se nas lutas contra as várias hordas de bandidos armados pela CIA; viveu uma das definições mais importantes dos tempos modernos na Crise de Outubro e está hoje trabalhando para a construção do socialismo.

Se olharmos as coisas de um ponto de vista superficial, pode parecer que aqueles que falam da subordinação do indivíduo ao Estado têm razão; a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem iguais as tarefas determinadas pelo governo, sejam elas de caráter econômico, cultural, de defesa, esportivo, etc. A iniciativa parte geralmente de Fidel ou do alto comando da revolução, é explicada ao povo, que a acata como sendo sua. Outras vezes, o partido e o governo escolhem experiências localizadas e as generalizam, seguindo o mesmo procedimento.

No entanto, o Estado às vezes se equivoca. Quando um desses equívocos se produz, nota-se uma diminuição do entusiasmo coletivo por meio de uma diminuição quantitativa de cada um dos elementos que a formam, e o trabalho diminui até ficar reduzido a magnitudes insignificantes; este é o momento de retificar. Isso aconteceu em março de 1962, diante de uma política sectária imposta ao partido por Aníbal Escalante.

É evidente que o mecanismo não basta para assegurar uma série de medidas sensatas e que falta uma conexão mais estruturada com as massas. Devemos melhorá-la no curso dos próximos anos, mas, para o caso das iniciativas provindas das instâncias superiores do governo, utilizamos por enquanto o método quase intuitivo de auscultar as reações gerais face aos problemas colocados.

Fidel é mestre nisso, cujo modo particular de integração com o povo só pode ser apreciado vendo-o atuar. Nas grandes concentrações públicas, observa-se algo como o diálogo de dois diapasões, cujas vibrações provocam outras no interlocutor. Fidel e a massa começam a vibrar num diálogo de intensidade crescente até alcançar o clímax num final abrupto coroado por nosso grito de luta e vitória.

O que é difícil entender para quem não vive a experiência da revolução é essa estreita unidade dialética existente entre o indivíduo e a massa, em que ambos se interrelacionam, e a massa, por sua vez, enquanto conjunto de indivíduos, se interrelaciona com os dirigentes.

No capitalismo pode-se verificar alguns fenômenos desse tipo, quando aparecem políticos capazes de conseguir a mobilização popular, mas se não se tratar de um autêntico movimento social, e nesse caso não é totalmente lícito falar de capitalismo, o movimento durará enquanto durar a vida de quem o impulsiona, ou até o fim das ilusões populares, imposto pelo rigor da sociedade capitalista. Nessa sociedade, o homem é dirigido por um frio ordenamento, que habitualmente escapa ao domínio de sua compreensão. O exemplar humano, alienado, tem um cordão umbilical invisível que o liga à sociedade no seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos de sua vida, modela seu caminho e seu destino.

As leis do capitalismo, invisíveis para o homem comum e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este o perceba. Ele vê apenas a amplitude de um horizonte que parece infinito. É apresentado desse modo pela propaganda capitalista, que pretende tirar do caso Rockefeller – verídico ou não – uma lição sobre as possibilidades de êxito. A miséria que é necessária acumular para que surja um exemplo como este e a quantidade de desgraças que uma fortuna dessa magnitude ocasionou para poder existir não aparecem no quadro, e nem sempre as forças populares têm a possibilidade de aclarar esses conceitos (caberia aqui uma indagação sobre como, nos países imperialistas, os trabalhadores perdem seu espírito internacional de classe por causa de uma certa cumplicidade na exploração dos países dependentes e como esse fato, ao mesmo tempo, diminui o espírito de luta das massas no próprio país; mas este é um tema que foge ao propósito destas notas).

De qualquer maneira, mostra-se o caminho com obstáculos que, aparentemente, um indivíduo com as qualidades necessárias pode superar para chegar até a meta. O prêmio é visualizado à distância; o caminho é solitário. Ademais, é uma corrida de lobos: pode-se chegar apenas à custa do fracasso de outros.

Tentarei agora definir o indivíduo, ator desse estranho e apaixonante drama que é a construção do socialismo, em sua dupla existência de ser único e membro da comunidade.

Penso que o mais simples é reconhecer sua qualidade de não feito, de produto não acabado. As falhas do passado se transmitem até o presente na consciência individual, e há necessidade de se fazer um trabalho contínuo para erradicá-las.

O processo é duplo: por um lado, a sociedade atua com sua educação direta e indireta; por outro lado, o indivíduo se submete a um processo consciente de autoeducação.

A nova sociedade em formação tem que competir duramente com o passado. Isso se faz sentir não apenas na consciência individual, na qual pesam os resíduos de uma educação sistematicamente orientada para o isolamento do indivíduo, mas também pelo próprio caráter desse período de transição, quando persistem as relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão sentir na organização da produção e, em consequência, na consciência.

No esquema de Marx se concebia o período de transição como resultado da transformação explosiva do sistema capitalista destruído por suas contradições; na realidade posterior, viu-se como desprendem da árvore imperialista alguns países que constituem os ramos mais débeis, fenômeno previsto por Lenin. Nesses países, o capitalismo se desenvolveu suficientemente para fazer sentir seus efeitos de um ou outro modo sobre o povo, mas não são suas próprias contradições que, esgotadas todas as possibilidades, fazem explodir o sistema. A luta de libertação contra um opressor externo; a miséria provocada por acidentes estranhos como a guerra, cujas consequências fazem recair as classes privilegiadas sobre os explorados; os movimentos de libertação destinados a derrotar regimes neocolonialistas, são os fatores habituais do desencadeamento. A ação consciente faz o resto.

Nesses países, ainda não se produziu uma educação completa para o trabalho social, a riqueza está longe de poder chegar às massas por meio do simples processo de apropriação. O subdesenvolvimento, por um lado, e a habitual fuga de capitais para países “civilizados”, por outro, tornam impossível uma mudança rápida e sem sacrifícios. Resta um grande caminho a percorrer na construção da base econômica, e a tentação de seguir os caminhos trilhados pelo
interesse material como alavanca impulsora de um desenvolvimento acelerado é muito grande.
Corre-se o perigo de que as árvores impeçam de ver o bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com a ajuda das armas legadas pelo capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca etc.), pode-se chegar a um beco sem saída. E chega-se aí depois de percorrer uma longa distância, na qual os caminhos se cruzam muitas vezes e em que é difícil perceber o momento em que se errou
de caminho. Entretanto, a base econômica adaptada fez seu trabalho de corrosão sobre o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, paralelamente à base material, há que se fazer o homem novo.

Daí a importância de escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole fundamentalmente moral, sem esquecer uma correta utilização do estímulo material, sobretudo de natureza social.

Como já disse, em momentos de perigo extremo é fácil potencializar os estímulos morais; para manter sua vigência, é necessário o desenvolvimento de uma consciência na qual os valores adquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve se transformar em uma gigantesca escola.

As grandes linhas do fenômeno são similares ao processo de formação da consciência capitalista em sua primeira época. O capitalismo recorre à força, mas também educa as
pessoas dentro do sistema. A propaganda direta é realizada pelos encarregados de explicar o caráter inevitável de um regime de classe, seja de origem divina, ou por imposição
da natureza como ser mecânico. Isso aplaca as massas, que se veem oprimidas por um mal contra o qual não é possível lutar.

Em seguida, vem a esperança, e é neste ponto que se diferencia dos regimes anteriores de casta, que não apontavam saídas possíveis.

Para alguns, continuará vigente ainda a fórmula de castas: o prêmio para os obedientes consiste no acesso, depois da morte, a outros mundos maravilhosos, onde os bons são
premiados, como acontece na velha tradição. Para outros há inovação: a separação em classes é fatal, mas os indivíduos podem sair da classe a que pertencem por meio do trabalho, da iniciativa, etc. Esse processo e o da autoeducação para o triunfo devem ser profundamente hipócritas: é a demonstração interessada de que uma mentira é verdade.

No nosso caso, a educação direta adquire uma importância muito maior. A explicação é convincente porque é verdadeira: não precisa de subterfúgios. Ela se exerce por meio
do aparato educativo do Estado em função da cultura geral, técnica e ideológica, por meio de organismos como o Ministério da Educação e o aparelho de divulgação do partido. A
educação penetra nas massas e a nova atitude preconizada tende a se converter em hábito; a massa vai incorporando-a e pressiona quem ainda não se educou. Esta é a forma indireta
de educar as massas, tão poderosa quanto a outra.

Mas o processo é consciente: o indivíduo recebe continuamente o impacto do novo poder social e percebe que não está completamente adequado a ele. Sob a influência da
pressão que supõe a educação indireta, ele trata de se acomodar a uma situação que sente como justa e cuja própria falta de desenvolvimento o tinha impedido de fazê-lo até
agora. Ele se autoeduca.

Neste período de construção do socialismo, podemos ver o homem novo que está nascendo. Sua imagem ainda não está acabada, nem poderia estar, já que o processo anda paralelo ao desenvolvimento de novas formas econômicas.

Tirando aqueles cuja falta de educação os faz tender para o caminho solitário, para a autossatisfação de suas ambições, aqueles que, mesmo dentro desse novo panorama de
marcha conjunta, têm a tendência de caminhar isolados da massa que acompanham, o importante é que os homens vão adquirindo cada dia maior consciência da necessidade
de sua incorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importância como motores dela.
Eles já não andam completamente sozinhos por caminhos perdidos em direção a longínquas aspirações. Eles seguem a vanguarda constituída pelo partido, pelos operários da vanguarda e pelos homens da vanguarda que caminham ligados às massas e em estreita comunicação com
elas. As vanguardas têm os olhos voltados para o futuro e sua recompensa, mas esta não é vista como algo individual; o prêmio é a nova sociedade, na qual os homens terão características diferentes: a sociedade do homem comunista.

O caminho é longo e cheio de dificuldades. Às vezes, por se ter enganado de caminho, tem de retroceder; outras vezes, por caminhar depressa demais, nos separamos das massas; em certas ocasiões, por fazê-lo lentamente, sentimos a presença próxima dos que pisam em nossos calcanhares. Em nossa ambição de revolucionários, tentamos caminhar tão depressa quanto possível, abrindo caminhos; mas sabemos que temos de nutrir-nos da massa, e esta somente poderá avançar mais rápido se a animamos com nosso exemplo.

Apesar da importância dada aos estímulos morais, o fato de existir a divisão em dois grupos principais (excluindo, claro, a fração minoritária dos que não participam por uma
razão ou outra da construção do socialismo) aponta a relativa falta de desenvolvimento da consciência social. O grupo de vanguarda é ideologicamente mais avançado que a massa; esta conhece os novos valores, mas insuficientemente.

Enquanto nos primeiros se dá uma mudança qualitativa que lhes permite se sacrificar na sua função de vanguarda, os segundos apenas seguem e devem ser submetidos a estímulos e pressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado que se exerce não somente sobre a classe derrotada, mas também individualmente sobre a classe vencedora.

Tudo isto implica, para seu êxito total, a necessidade de uma série de mecanismos, as instituições revolucionárias. Na imagem das multidões marchando para o futuro
se encaixa o conceito de institucionalização como o de um conjunto harmônico de canais, escalões, represas, aparatos bem consolidados que permitam essa marcha, que permitam a seleção natural daqueles destinados a caminhar na vanguarda e que concedam o prêmio aos que cumprem, e o castigo aos que atentem contra a sociedade em construção.

Essa institucionalidade da revolução ainda não foi alcançada. Buscamos algo novo que permita a perfeita identificação entre o governo e a comunidade em seu conjunto, ajustada às condições peculiares da construção do socialismo e fugindo ao máximo dos lugares-comuns da democracia burguesa, transplantados para a sociedade em formação (como as câmaras legislativas, por exemplo). Foram feitas algumas experiências dedicadas a criar progressivamente a institucionalização da revolução, mas sem maior pressa. O maior freio que encontramos foi o medo de que qualquer aspecto formal nos separe das massas e do indivíduo, nos faça perder de vista a última e mais importante ambição revolucionária, que é a de ver o homem libertado de sua alienação.

Não obstante a carência das instituições, o que deve ser superado gradualmente, as massas agora fazem a história como um conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. O homem, no socialismo, apesar de sua aparente padronização, é mais completo; apesar da falta do mecanismo perfeito para isso, sua possibilidade de se expressar e de influir no aparato social é infinitamente maior.

Mas é preciso ainda acentuar sua participação consciente, individual e coletiva em todos os mecanismos de direção e produção, e ligá-la à ideia da necessidade da educação técnica e ideológica, de maneira que sinta como esses processos são estreitamente interdependentes e seus avanços, paralelos. Desse modo alcançará a total consciência de seu ser social, o que equivale à sua plena realização como criatura humana, uma vez quebradas todas as correntes da alienação.

Isso se traduzirá concretamente na reapropriação de sua natureza por meio do trabalho livre e da expressão de sua própria condição humana por meio da cultura e da arte.

Para que se desenvolva na primeira, o trabalho deve adquirir uma nova condição. A mercadoria homem cessa de existir e se instala um sistema que outorga uma cota pelo cumprimento do dever social. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é apenas a trincheira onde o dever é cumprido. O homem começa a libertar seu pensamento da obrigação penosa que tinha de satisfazer suas necessidades animais por meio do trabalho. Ele começa a se ver retratado em sua obra e a compreender sua magnitude humana por meio do objeto criado, do trabalho realizado. Isso já não significa deixar uma parte de seu ser em forma de força de trabalho vendida, que não lhe pertence mais, mas significa uma emanação de si mesmo, uma contribuição à vida comum em que se reflete; o cumprimento do seu dever social.

Fazemos todo o possível para dar ao trabalho esta nova categoria de dever social e uni-lo, por um lado, ao desenvolvimento da técnica, o que dará condições para uma maior liberdade e, por outro, ao trabalho voluntário, embasado na concepção marxista de que o homem realmente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria.

Claro que existem ainda aspectos coercitivos no trabalho, mesmo quando é voluntário; o homem não transformou toda a coerção que o rodeia num reflexo condicionado de natureza social, e produz ainda, em muitos casos, sob a pressão do meio (compulsão moral, como a chama Fidel). Ainda lhe falta conseguir a plena recriação espiritual diante de sua obra, sem a pressão direta do meio social, mas ligado a ele pelos novos hábitos. Isto será o comunismo.

A mudança não se produz automaticamente na consciência como também não se produz na economia. As variações são lentas e não são rítmicas; há períodos de aceleração, outros de estagnação e inclusive de retrocesso.

Devemos considerar também, como já dissemos antes, que não estamos diante do período puro de transição, como o descreveu Marx na Crítica ao programa de Gotha, mas numa nova fase não prevista por ele; o primeiro período de transição do comunismo ou da construção do socialismo. Isso se dá em meio a violentas lutas de classe e com elementos do capitalismo em seu seio, que obscurecem a compreensão cabal de sua essência.

Se a isso acrescentamos a escolástica que freou o desenvolvimento da filosofia marxista e impediu o tratamento sistemático do período, cuja economia política não se desenvolveu, devemos convir que ainda estamos engatinhando e que é preciso dedicar-se a investigar todas as características primordiais deste período antes de elaborar uma teoria econômica e política de maior alcance.

A teoria resultante dará indefectivelmente maior importância aos dois pilares da construção: a formação do homem novo e o desenvolvimento da técnica. Em ambos os aspectos ainda resta muito por fazer, mas é menos perdoável o atraso no que diz respeito à concepção da técnica como base fundamental, já que aqui não se trata de avançar às cegas, mas de seguir durante bom tempo o caminho aberto pelos países mais adiantados do mundo. Por isso, Fidel insiste tanto sobre a necessidade da formação tecnológica e científica de todo o nosso povo e mais ainda de sua vanguarda.

No campo das ideias que conduzem a atividades não produtivas, é mais fácil ver a divisão entre a necessidade material e a espiritual. Faz muito tempo que o homem tenta se libertar da alienação mediante a cultura e a arte. Ele morre diariamente nas oito ou mais horas enquanto atua como mercadoria, para ressuscitar depois por meio de sua criação espiritual. Mas esse remédio traz os germes da mesma doença: é um ser solitário que busca comunhão com a natureza. Ele defende sua individualidade oprimida pelo meio e reage diante das ideias estéticas como um ser único cuja aspiração é permanecer imaculado.

Trata-se apenas de uma tentativa de fuga. A lei do valor já não é um mero reflexo das relações de produção; os capitalistas monopolistas rodeiam-na de um complicado arcabouço que a converte numa serva dócil, mesmo que os métodos empregados sejam puramente empíricos. A superestrutura impõe um tipo de arte no qual os artistas têm de ser educados. Os rebeldes são dominados pela maquinaria e somente os talentos excepcionais poderão criar
sua própria obra. Os restantes se tornam assalariados envergonhados ou são triturados.
Inventa-se a investigação artística que se dá como definidora da liberdade, mas essa “pesquisa” tem seus limites, imperceptíveis até o momento de se chocar com eles, vale dizer, de se colocarem os problemas reais do homem em sua alienação. A angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvulas cômodas para a preocupação humana; combate-se a ideia de fazer da arte uma arma de denúncia.

Se as regras do jogo são respeitadas, pode-se obter todas as honras: as que ganharia um macaco ao inventar piruetas. A condição é não tentar escapar da jaula invisível.

Quando a revolução tomou o poder, produziu-se o êxodo dos domesticados totais; os demais, revolucionários ou não, viram um novo caminho. A pesquisa artística ganhou novo impulso. No entanto, as rotas estavam mais ou menos traçadas, e o sentido do conceito “fuga” se escondeu por trás da palavra “liberdade”. Os próprios revolucionários mantiveram muitas vezes essa atitude, reflexo do idealismo burguês na consciência.

Em países que passaram por um processo similar, tentou-se combater essas tendências com um dogmatismo exagerado. A cultura geral se converteu quase em um tabu e a representação formalmente exata da natureza foi proclamada o ápice da aspiração cultural, e esta se converteu logo numa representação mecânica da realidade social que se queria fazer ver; a sociedade ideal, quase sem conflitos e contradições, que se buscava criar.

O socialismo é jovem e tem erros.

Nós, os revolucionários, carecemos, muitas vezes, dos conhecimentos e da audácia intelectual necessários para encarar a tarefa do desenvolvimento de um novo homem por métodos diferentes dos convencionais, e os métodos convencionais sofrem a influência da sociedade que os criou (mais uma vez se coloca o tema da relação entre forma e conteúdo). A desorientação é grande, e os problemas da construção material nos absorvem. Não existem
artistas reconhecidos que, por sua vez, tenham grande autoridade revolucionária. Os homens do partido devem assumir essa tarefa e tentar conseguir o objetivo principal: educar o povo.

Busca-se então a simplificação, que é o que todo mundo entende e que é também o que os funcionários entendem. A pesquisa artística autêntica é anulada e o problema da cultura geral é reduzido a uma apropriação do presente socialista e do passado morto (portanto, não perigoso). Assim nasce o realismo socialista sobre as bases da arte do século passado.

Mas a arte realista do século XIX também é de classe, talvez mais puramente capitalista do que esta arte decadente do século XX, em que transparece a angústia do homem alienado. O capitalismo em termos de cultura já deu tudo de si e dele não resta nada senão o anúncio de um cadáver fedorento na arte, sua decadência atual. Mas por que pretender buscar
nas formas congeladas do realismo socialista a única receita válida? Não se pode opor ao realismo socialista a “liberdade”, porque esta não existe ainda e não existirá até o desenvolvi-
mento completo da sociedade nova, mas não se deve pretender condenar todas as formas de arte posteriores à primeira metade do século XIX, resolutamente desde o trono pontifício do realismo, pois se cairia num erro proudhoniano de retorno ao passado, colocando camisa de força na expressão artística do homem que nasce e se constrói hoje.

Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico e cultural que permita a pesquisa e destrua a erva daninha tão facilmente multiplicável no terreno beneficiado da subvenção estatal.

No nosso país, o erro do mecanicismo realista não ocorreu; mas sim um outro de signo contrário. E deu-se por não se ter compreendido a necessidade da criação do homem novo que não seja o representado pelas ideias do século XIX, nem tampouco pelas do nosso século decadente e mórbido. O homem do século XXI é aquele que devemos criar, mesmo que ainda seja uma aspiração subjetiva e não sistematizada. Este é precisamente um dos pontos funda-
mentais do nosso estudo e do nosso trabalho e, à medida que consigamos êxitos concretos sobre uma base teórica, ou, vice-versa, se extraiam conclusões teóricas de caráter amplo sobre a base de nossa pesquisa concreta, teremos dado uma contribuição valiosa ao marxismo-leninismo, à causa da humanidade. A reação contra o homem do século XIX nos fez cair na reincidência do decadentismo do século XX. Não é um erro demasiadamente grave, mas devemos superá-lo sob pena de abrir um largo espaço ao revisionismo.

As grandes multidões estão se desenvolvendo, as novas ideias vão alcançando ímpeto adequado no seio da sociedade, e as possibilidades materiais de desenvolvimento integral de absolutamente todos seus membros tornam o labor muito mais frutífero. O presente é de lutas; o futuro nos pertencem.

Resumindo, a culpabilidade de muitos dos nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original; não são autenticamente revolucionários. Podemos tentar enxertar o olmo para que dê peras, mas simultaneamente temos que plantar a pereira. As novas gerações virão livres do pecado original. As probabilidades de que surjam artistas excepcionais serão tanto maiores quanto mais se tenha ampliado o campo da cultura e a possibilidade de expressão. Nossa tarefa consiste em impedir que a geração atual, desarticulada por seus conflitos, se perverta e perverta as novas. Não devemos criar assalariados dóceis ao pensamento oficial, nem “bolsistas” que vivam do amparo governamental, exercendo uma liberdade entre aspas. Logo virão os revolucionários que entoam o canto do homem novo com a voz autêntica do povo. É um processo que exige tempo.

Na nossa sociedade, a juventude e o Partido Comunista desempenham um grande papel.

A primeira é particularmente importante, por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das falhas anteriores.

Ela recebe um tratamento de acordo com nossas ambições. Sua educação é cada vez mais completa e não esquecemos sua integração com o trabalho desde os primeiros momentos. Nossos bolsistas fazem trabalho físico durante suas férias ou simultaneamente com o estudo. O trabalho em certos casos é um prêmio, em outros, um instrumento de educação, mas nunca um castigo. Uma nova geração nasce.

O partido é uma organização de vanguarda. Os melhores trabalhadores são propostos por seus companheiros para integrá-lo. Ele é minoritário, mas de grande autoridade pela qualidade de seus quadros. Nossa aspiração é que o partido seja de massas, mas quando as massas tenham alcançado o nível de desenvolvimento da vanguarda, quer dizer, quando estejam educadas para o comunismo. O trabalho é dirigido para essa educação. O partido é o exemplo vivo: seus quadros devem dar aulas de laboriosidade e sacrifício, devem levar, com sua ação, as massas até o fim da tarefa revolucionária, o que implica anos de dura luta contra as dificuldades da construção, dos inimigos de classe, os flagelos do passado, o imperialismo…

Eu queria agora explicar o papel desempenhado pela personalidade pelo homem como indivíduo dirigente das massas que fazem a história. É nossa experiência e não uma
receita.

Nos primeiros anos, Fidel deu à revolução o impulso, a direção, a tônica sempre, mas existe um bom grupo de revolucionários que se desenvolveu no mesmo sentido que o dirigente máximo, e uma grande massa que segue seus dirigentes porque tem fé neles; e tem fé neles porque souberam interpretar seus anseios.

Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem de quantas belezas que vêm do exterior podem ser compradas com os salários atuais. Trata-se, precisamente, do indivíduo sentir-se mais pleno, com muito mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade. O indivíduo do nosso país sabe que a época gloriosa em que lhe é dado viver é de sacrifício; conhece o sacrifício. Os primeiros o conheceram na Sierra Maestra e onde quer que se tenha lutado; depois o conhecemos em toda Cuba. Cuba é a vanguarda da América e deve fazer sacrifícios por ocupar justamente o lugar de vanguarda e porque indica às massas da América Latina o caminho da liberdade total.

No interior do país, os dirigentes devem cumprir seu papel de vanguarda; e temos de dizê-lo com toda a sinceridade, em uma revolução verdadeira, na qual se dá tudo, da qual não se espera nenhuma retribuição material: a tarefa do revolucionário de vanguarda é, ao mesmo tempo, magnífica e angustiante.

Deixe-me dizer, com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade. Talvez este seja um dos grandes dramas do dirigente; ele deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem contrair um só músculo. Nossos revolucionários de vanguarda devem idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas, e torná-lo único e indivisível. Não podemos baixar com sua pequena dose de carinho cotidiano até os lugares onde o homem comum o pratica.

Os dirigentes da revolução têm filhos que em seus primeiros balbucios não aprendem a chamar o pai; mulheres que devem ser parte do sacrifício geral de sua vida para levar a revolução ao seu destino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao marco dos companheiros de revolução. Não há vida fora dela.

Nessas condições, deve-se ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentimento de justiça e de verdade para não cair em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, em isolamento das massas. Todos os dias deve-se lutar para que esse amor à humanidade viva e se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplos, de mobilização.

O revolucionário, motor ideológico da revolução dentro do seu partido, se consome nessa atividade ininterrupta, cujo único fim é a morte, a não ser que a construção se realize em escala mundial. Se seu afã revolucionário diminui quando as tarefas mais prementes se veem realizadas em escala local, e se esquece o internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e acaba numa modorra cômoda da qual se aproveitam
nossos inimigos irreconciliáveis, o imperialismo, que ganha terreno. O internacionalismo proletário é um dever, mas também uma necessidade revolucionária. Desse modo educamos nosso povo.

Claro que existem perigos presentes nas circunstâncias atuais. Não apenas o do dogmatismo, não apenas de congelar as relações com as massas em meio à grande tarefa, mas existe também o perigo das debilidades nas quais se pode cair. Se o homem pensa que para dedicar sua vida inteira à revolução ele não pode distrair sua mente com a preocupação da falta de um determinado produto para o filho, com o fato de os sapatos das crianças estarem acabando, com o fato de sua família carecer de determinado bem necessário, ele, com esse raciocínio, deixa que se infiltre o germe da futura corrupção.

No nosso caso, temos mantido que nossos filhos devem ter e carecer daquilo que têm e daquilo que carecem os filhos do homem comum e que nossa família deve compreendê-lo e lutar por isso. A revolução se faz por meio do homem, mas o homem deve forjar dia a dia seu espírito revolucionário.

Assim vamos marchando. À cabeça da imensa coluna – não temos vergonha, nem nos intimida dizê-lo – está Fidel, depois estão os melhores quadros do partido e imediatamente depois, tão perto que sua enorme força pode ser sentida, está o povo em seu conjunto; sólida armação de individualidades que caminham até um fim comum; indivíduos que chegaram à consciência do que é necessário fazer; homens que lutam para sair do reino da necessidade e entrar no da liberdade.

Essa imensa multidão se ordena; sua ordem corresponde à consciência da necessidade dela; já não é mais uma força dispersa, divisível em mil frações projetadas no espaço como fragmentos de granadas, procurando apenas alcançar, por qualquer meio, numa luta travada contra seus semelhantes, uma posição ou algo que dê uma segurança diante de um futuro incerto.

Sabemos que existem sacrifícios à nossa frente e que devemos pagar um preço pelo fato heroico de constituir uma vanguarda como nação. Nós, dirigentes, sabemos que temos um preço a pagar por ter o direito de dizer que estamos à cabeça do povo que está à cabeça da América. Todos e cada um de nós paga pontualmente sua cota de sacrifício, conscientes de receber o prêmio na satisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todos até o homem novo que se vislumbra no horizonte.

Permita-me tentar algumas conclusões:

Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres.

O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-lhe apenas a substância proteica e a roupagem; nós as criaremos.

Nossa liberdade e seu sustento cotidiano têm cor de sangue e estão repletas de sacrifícios.

Nosso sacrifício é consciente; cota para pagar a liberdade que construímos.

O caminho é longo e, em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos.

Nós nos forjaremos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica.

A personalidade desempenha o papel de mobilização e de direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e não se afasta do caminho.

Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhores dentre os bons, o partido.

O alicerce fundamental da nossa obra é a juventude: nela depositamos nossa esperança e a preparamos para tomar a bandeira das nossas mãos.

Se esta carta balbuciante esclarece alguma coisa, cumpriu o objetivo a que me propus.

Receba nossa saudação ritual, com um aperto de mãos ou um “Ave-maria puríssima”.

Pátria ou morte.

Contra o Liberalismo — Mao Tsé-Tung

Nós somos pela luta ideológica ativa porque é uma arma para se alcançar a unidade interna do Partido e das demais organizações revolucionárias, em benefício

Presidente Fred, o messias pantera

Artigo publicado como apresentação do livro “Poder em Qualquer Lugar Onde Haja Povo” (2021), de Fred Hampton, edição conjunta do Editorial Adandé e do TraduAgindo.

Assata, aquela que luta

Artigo publicado como apresentação do livro Assata Shakur – Revolucionária Negra, parte da Coleção Panterismo do Editorial Adandé.