BACURI https://revistabacuri.editorialadande.com/ revista de teoria, política e história Sun, 29 Dec 2024 03:40:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 https://revistabacuri.editorialadande.com/wp-content/uploads/2024/12/Avatar-RB-150x150.png BACURI https://revistabacuri.editorialadande.com/ 32 32 Mensagem aos brasileiros — Carlos Marighella https://revistabacuri.editorialadande.com/mensagem-marighella/ Sun, 29 Dec 2024 03:40:09 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=583 Texto assinado por Carlos Marighella e datado de dezembro de 1968. Publicado originalmente com o título “Mensagem aos brasileiros” como Suplemento do jornal O Guerrilheiro.  Foi também traduzido e publicado em diversas línguas e países, incluindo em espanhol no semanário uruguaio Marcha com o título “Llamado al pueblo brasileño a unirse a la lucha" em fevereiro de 1969, dirigido então pelo jovem Eduardo Galeano, e em inglês no The Black Panther, jornal do Partido Pantera Negra nos EUA, de novembro de 1969 (Vol. 3, nº 29), com o título “A message to brazilians”. Fontes originais no BNM e Arquivo Nacional.

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De algum lugar do Brasil, dirijo-me à opinião pública do país, e em especial aos operários, aos agricultores pobres, aos estudantes, aos professores, aos jornalistas e aos intelectuais, aos padres e bispos, aos jovens e à mulher brasileira.

Os militares tomaram o poder pela violência em 1964, e eles próprios abriram o caminho à subversão. Não podem queixar-se nem espantar-se de que os patriotas trabalhem para desalojá-los dos postos de mando que usurparam descaradamente.

Afinal, que ordem os gorilas querem preservar? Os assassinatos de estudantes em praça pública? Os fuzilamentos do Esquadrão da Morte? As torturas e espancamentos no DOPS e nos quartéis militares?

O governo desnacionalizou o país, entregando-o aos Estados Unidos – o pior inimigo do povo brasileiro. Os norte-americanos são donos das maiores extensões de terra do Brasil, detêm em suas mãos uma grande parte da Amazônia e de nossas riquezas minerais, incluindo minerais atômicos. Têm bases de foguete em pontos estratégicos de nosso território. Os agentes da espionagem norte-americana da CIA estão dentro do país como se estivessem em sua própria casa, orientando a polícia em caçadas humanas aos patriotas brasileiros e assessorando o governo na repressão ao povo.

O acordo MEC-Usaid vem sendo posto em prática pela ditadura com o propósito de aplicar em nosso país o sistema norte-americano de ensino e de transformar nossa universidade numa instituição de capital privado, onde só os ricos possam estudar. Enquanto isso, não há vagas e os estudantes são obrigados a enfrentar as balas da polícia militar, disputando com o sangue o direito de estudar.

Para os operários, o que existe é o arrocho salarial e o desemprego. Para os camponeses, os despejos, a grilagem de terras, os arrendamentos extorsivos. Para os nordestinos, a fome, a miséria, a doença.

Não há liberdade no país. A censura é exercida para coibir a atividade intelectual.

A perseguição religiosa cresce dia a dia. Sacerdotes são presos e expulsos do país, os bispos agredidos e ameaçados.

A inflação segue desenfreada. Há dinheiro demais em poder dos grandes capitalistas, enquanto escasseia nas mãos dos trabalhadores. Nunca pagamos tão caro pelos aluguéis e pelos gêneros de primeira necessidade, com salários tão baixos e cada vez mais reduzidos.

A corrupção campeia no governo. Não admira que os maiores corruptos do país sejam ministros e oficiais das forças armadas. Membros do governo vivem à tripa forra, praticando o contrabando e a contravenção, entretanto para o funcionalismo a ditadura não concede mais do que um mísero aumento de 20%.

A orgia de dinheiro inflacionado deu origem à onda de assaltos, fenômeno social de um país onde há nababos desperdiçando fortunas e milhões de miseráveis mendigando emprego, comida e moradia. Sem força moral, a ditadura não impõe mais respeito, e sua autoridade está posta em xeque. Nem ao menos consegue garantir o dinheiro em poder dos bancos e repartições públicas. E ainda cai no ridículo, ao apresentar um patriota como super-homem, atribuindo-lhe o dom da ubiquidade e a autoria de quantos assaltos e atos terroristas se perpetram no país.     

 Ante a enxurrada escandalosa de mentiras e acusações terrivelmente injuriosas contra mim lançadas, não terei outra atitude a tomar a não ser responder à bala ao governo e suas nojentas forças policiais empenhadas na minha captura vivo ou morto.

Agora não será como em 1964, quando eu estava desarmado e a polícia me baleou, sem que pudesse pagar na mesma moeda.

As organizações de extrema-direita assaltam, atiram bombas, matam, sequestram. Ninguém, entretanto, tem conhecimento de que o governo esteja caçando qualquer assaltante ou terrorista do CCC.

A ditadura alega que há um plano de subversão e uma conspiração de cassados para derrubar o governo. E partindo para a caçada às bruxas, procura encarniçadamente o comando da subversão.

O comando da subversão, porém, está no descontentamento popular, pois ninguém aguenta mais este governo.

O movimento que tanto apavora os gorilas vem de baixo para cima. Não vem dos cassados, mas das entranhas do povo descontente, decidido agora a apelar para a força das massas, para a sua unidade e organização.

Não será através de quarteladas que derrubaremos a ditadura, nem por meio de eleições, redemocratização ou outras panaceias da oposição burguesa consentida.

Não acreditamos num parlamento conformado e submisso, mantido com o beneplácito da ditadura e disposto a ceder em tudo, para que os deputados e senadores possam sobreviver com seus subsídios.

Não cremos na solução pacífica.

As condições para violência nada têm de artificiais, e estão criadas no Brasil desde que a ditadura se impôs pela força.

Violência gera violência. E a única saída é o que estamos fazendo: utilizar violência contra os que tiveram a primazia em usá-la para prejudicar os interesses da pátria e das massas populares.

A violência que apregoamos, defendemos e organizamos é a da luta armada do povo, concebida como guerrilha.

Os gorilas pensam que a morte de Che Guevara na Bolívia significou o fim da guerrilha. Ao contrário, estamos inspirados no desprendido exemplo do guerrilheiro heroico e prosseguimos no Brasil sua luta patriótica, trabalhando junto ao nosso povo com a certeza na frente e a história a nosso favor.

O que está acontecendo em nosso país é um vasto movimento de resistência contra a ditadura. E dentro dele deu-se o irrompimento de tais operações e táticas guerrilheiras.

Aceitando o honroso título de inimigo público número 1, que me foi conferido pelo governo gorila, assumo a responsabilidade pela irrompimento de tais operações e táticas guerrilheiras.

Quem desfechará os ataques vindouros, onde, como e quando serão desencadeados, isto é um segredo da guerrilha, que o inimigo em vão tentará saber.

A iniciativa revolucionária está em nossas mãos. Já passamos à ação. Nada mais temos a esperar.

Os gorilas ficarão num labirinto escuro, até que se vejam obrigados a transformar a situação política do Brasil numa situação militar.

Ao desencadear a revolução popular, empregando táticas guerrilheiras, temos como objetivo organizar a guerra justa e necessária conta os Estados Unidos, a guerra total do povo brasileiro contra seus inimigos.

A guerra revolucionária no Brasil é uma guerra prolongada e não uma conspiração. Sua história está sendo escrita com sangue dos estudantes nas ruas e nas prisões onde os patriotas são torturados e massacrados, na ação dos sacerdotes perseguidos e injuriados, nas greves dos operários, na repressão aos camponeses, nas lutas das áreas rurais e dos grandes centros urbanos, envolvidos pela violência.

O destino das guerrilhas está nas mãos dos grupos revolucionários e na aceitação, apoio, simpatia e participação direta ou indireta de todo o povo. Para isso, os grupos revolucionários devem unir-se na ação, de baixo para cima.

Os revolucionários de todos os matizes e de qualquer filiação partidária, onde quer que se encontrem, devem prosseguir na luta e criar pontos de apoio para a guerrilha, uma vez que o dever de todo revolucionário é fazer a revolução, não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários e só temos compromissos com a revolução.

A experiência recente das lutas de nosso povo monstra que o Brasil entrou numa fase de táticas guerrilheiras e ações armadas de todos os tipos, ataques de surpresa e emboscadas, captura de armas, atos de protesto e sabotagem, manifestações de massas, comícios-relâmpagos, passeatas, greves, ocupações, prisão de policiais e gorilas para a troca por prisioneiros políticos.

O princípio tático que devemos seguir agora é distribuir as forças revolucionárias para intensificar essas formas de luta. Mais adiante deveremos concentrar as forças revolucionárias para realizar operações de manobras.

Na área rural ou na área urbana, dentro dos caminhos a escolher pelos revolucionários subsistem três grandes opções: atuar na frente guerrilheira, na frente de massas ou na rede de sustentação.

Em qualquer uma destas frentes, é preciso fazer o trabalho clandestino, organizar grupos secretos, manter a vigilância contra a infiltração policial, punir com a morte os delatores, espiões e “dedos-duros”, não deixar filtrar nenhuma informação ao inimigo.

Seja qual for a situação, é preciso ter armas e munições, aumentar a potência de fogo dos revolucionários e saber utilizá-la com acerto, decisão e rapidez, inclusive em pequenas ações como distribuição de boletins e pinturas murais.

Entre algumas medidas populares previstas para serem aplicadas inapelavelmente com a vitória da revolução, executaremos as seguintes:

— Aboliremos os privilégios e a censura;

— Estabeleceremos a liberdade de criação e a liberdade religiosa;

— Libertaremos todos os presos políticos e os condenados pela atual ditadura;

— Faremos a extinção da polícia política, do SNI, Cenimar e demais órgãos da repressão policial;

— Após julgamento público sumário, levaremos ao pare-dão os agentes da CIA encontrados no país e os policiais responsáveis por torturas, espancamentos, baleamentos e fuzilamentos de presos;

— Expulsaremos os norte-americanos do país e confisca-remos suas propriedades, incluindo empresas, bancos e extensões terras;

— Confiscaremos as empresas de capital privado nacional que colaboraram com os norte-americanos e que se opuseram à revolução;

— Tornaremos efetivo o monopólio estatal na esfera do câmbio, comércio exterior, riquezas minerais, comunicações e serviços públicos fundamentais;

— Confiscaremos a propriedade latifundiária, acabando com o monopólio da terra, garantindo títulos de posse aos agricultores que trabalham, extinguindo formas de exploração como a meia, a terça, o arrendamento, o foro, o vale e o barracão, os despejos e a ação dos grileiros, punindo todos os responsáveis por crimes contra os camponeses;

— Confiscaremos todas as fortunas ilícitas dos grandes capitalistas e exploradores do povo;

— Eliminaremos a corrupção;

— Asseguraremos pleno empregos aos trabalhadores e às mulheres, terminando com o desemprego e o subemprego e aplicando o lema: de cada um segundo de sua capacidade, a cada um segundo do seu trabalho;

— Extinguiremos a atual legislação do inquilinato, eliminando os despejos e reduzindo os aluguéis, para proteger os interesses dos inquilinos, bem como criando condições materiais para a casa própria;

— Reformaremos todo o sistema de educação, eliminando o acordo MEC-Usaid e qualquer outro vestígio da intromissão norte-americana, para dar ao sistema de ensino brasileiro o sentido exigido pelas necessidades da libertação de nosso povo e seu desenvolvimento independente;

— Daremos expansão à pesquisa científica;

— Retiraremos o Brasil da condição de satélite da política exterior norte-americana, para nos tornamos independentes da política dos blocos militares, seguindo uma linha de nítido apoio aos povos subdesenvolvidos e em luta contra a colonização.

Todas estas medidas serão sustentadas pela aliança arma-da de operários, camponeses e estudantes, de onde surgirá o exército revolucionário de libertação nacional, cujo embrião é a guerrilha.

Estamos nos umbrais de uma nova época no Brasil, que marcará a transformação radical da nossa sociedade e a valorização da mulher e do homem brasileiros.

Lutaremos pela conquista do poder e pela substituição da máquina burocrática e militar do Estado pelo povo armado. O governo popular-revolucionário será o grande objetivo de nossa estratégia.

Ódio de morte aos imperialistas norte-americanos!

Abaixo a ditadura militar!

Viva Che Guevara!


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Os fundamentos sociais da questão feminina – Alexandra Kollontai https://revistabacuri.editorialadande.com/kollontai/ Sun, 29 Dec 2024 03:35:02 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=578 Deixando os sábios burgueses extasiados no debate sobre a questão da superioridade de um sexo sobre o outro, ou o peso do cérebro e a comparação da estrutura psicológica de homens e mulheres, os seguidores do materialismo histórico aceitam plenamente as peculiaridades naturais de cada sexo e requerem apenas que cada pessoa, seja homem ou mulher, tenha uma verdadeira oportunidade para sua mais completa e livre autodeterminação, e um maior desenvolvimento e implementação de todas as suas capacidades naturais. Os seguidores do materialismo histórico rejeitam a existência de uma questão específica das mulheres separada da questão social geral da atualidade. Atrás da subordinação das mulheres se escondem fatores econômicos específicos, as características naturais têm sido um fator secundário neste processo. Apenas o desaparecimento completo desses fatores, só a evolução dessas forças que em algum momento no passado levaram à subordinação das mulheres, será capaz de influenciar e alterar fundamentalmente a composição social que ocupa atualmente. Em outras palavras, as mulheres só podem se tornar verdadeiramente livres e iguais apenas em um mundo organizado por novas linhas sociais e de produção. No entanto, isso não significa que a melhora parcial na vida das mulheres no âmbito do atual sistema não é possível. A solução radical para a questão dos trabalhadores só é possível com a reconstrução completa das relações produtivas modernas. Mas isso deve nos impedir de trabalhar para reformas que servem para satisfazer os interesses mais urgentes do proletariado? Pelo contrário, cada nova meta da classe operária representa um passo que conduz a humanidade para o reino da liberdade e da igualdade social: todo o direito que as mulheres ganham traz-lhe mais perto do objetivo conjunto de emancipação total. A socialdemocracia foi a primeira a incluir no seu programa a demanda por igualdade de direitos das mulheres com os homens. O partido sempre exigiu em todos os lugares, nos seus discursos e na imprensa, a retirada de restrições que afetam as mulheres, e foi apenas a influência de tal partido que forçou outros partidos e governos a realizar reformas para mulheres. E, na Rússia, este partido não é apenas o defensor das mulheres em relação à sua posição teórica, mas sempre e em toda parte adere ao princípio da igualdade entre mulheres. O que impede as nossas defensoras “dos direitos iguais”, neste caso, aceitar o apoio deste partido forte e experiente? O fato é que por mais “radicais” que as igualitárias possam ser, elas ainda permanecem fiéis à sua própria classe burguesa. No momento, a liberdade política é um pré-requisito essencial para o crescimento e o poder da burguesia russa. Sem ela, verifica-se que todo o seu bem-estar econômico foi construído sobre a areia. A demanda por igualdade política é uma necessidade para as mulheres decorrente da própria vida. O slogan “o acesso às profissões” já não é suficiente, e apenas a participação direta no governo do país promete ajudar a melhorar a situação econômica das mulheres. Daí o desejo apaixonado das mulheres da média burguesia para o direito ao voto e, portanto, a sua hostilidade ao sistema burocrático moderno. No entanto, as feministas em suas demandas por igualdade política são como irmãs estrangeiras, os amplos horizontes abertos pela aprendizagem socialdemocrata continuam a ser estranhos e incompreensíveis para elas. As feministas buscam a igualdade perante a sociedade de classes existente, de nenhuma maneira atacam a base desta sociedade. Elas estão lutando por privilégios para si, sem comprometer as prerrogativas e privilégios existentes. Não acusamos que as representantes do movimento de mulheres burguesas não entendem o problema, sua visão flui inevitavelmente da sua posição de classe. A Luta pela Independência Econômica Em primeiro lugar, devemos perguntar se um movimento unitário apenas de mulheres é possível em uma sociedade baseada em antagonismos de classe. O fato de que as mulheres que participam no movimento de libertação não representam uma massa homogênea é óbvio para qualquer observador imparcial. O mundo das mulheres é dividido – como é a dos homens – em dois campos. Os interesses e as aspirações de um grupo de mulheres se aproximam à classe burguesa, enquanto o outro grupo tem ligações estreitas com o proletariado, e suas demandas para a libertação cobre uma solução completa para a questão das mulheres. Assim, embora ambos os lados sigam o tema geral de “liberação das mulheres”, os seus objetivos e interesses são diferentes. Cada um dos grupos parte inconscientemente dos interesses sua própria classe, o que dá um colorido específico de classe para os objetivos e tarefas definidas para si. Apesar das exigências aparentemente radicais feministas, não se deve perder de vista o fato de que as feministas não podem, devido à sua posição de classe, lutar pela transformação fundamental da estrutura econômica e social contemporânea, sem a qual a libertação das mulheres não pode ser concluída. Se em determinadas circunstâncias, as tarefas de curto prazo coincidem com os objetivos finais das mulheres das diferentes classes, no longo prazo, determinam a direção do movimento e as estratégias a serem seguidas são muito diferentes. Enquanto para as feministas alcançar a igualdade de direitos com os homens sob o atual mundo capitalista representa o suficiente, por si só, os direitos iguais no tempo presente para as mulheres proletárias, é apenas um meio para progressos na luta contra a escravidão econômica da classe trabalhadora. Feministas veem os homens como o inimigo principal, os homens que tomaram injustamente todos os direitos e privilégios para si, deixando as mulheres apenas cadeias e obrigações. Para elas, a vitória é ganha quando um privilégio desfrutado anteriormente exclusivamente pelo masculino é dado ao “sexo frágil”. Já as mulheres trabalhadoras têm uma visão diferente. Elas não veem os homens como o inimigo e opressor, no entanto, elas pensam nos homens como seus pares, que partilham com elas a monotonia da rotina diária e lutam com elas por um futuro melhor. A mulher e seu companheiro do sexo masculino são escravizados pelas mesmas condições sociais, pelas mesmas odiosas cadeias do capitalismo que oprimem as suas vontades e os privam das alegrias

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Deixando os sábios burgueses extasiados no debate sobre a questão da superioridade de um sexo sobre o outro, ou o peso do cérebro e a comparação da estrutura psicológica de homens e mulheres, os seguidores do materialismo histórico aceitam plenamente as peculiaridades naturais de cada sexo e requerem apenas que cada pessoa, seja homem ou mulher, tenha uma verdadeira oportunidade para sua mais completa e livre autodeterminação, e um maior desenvolvimento e implementação de todas as suas capacidades naturais. Os seguidores do materialismo histórico rejeitam a existência de uma questão específica das mulheres separada da questão social geral da atualidade. Atrás da subordinação das mulheres se escondem fatores econômicos específicos, as características naturais têm sido um fator secundário neste processo. Apenas o desaparecimento completo desses fatores, só a evolução dessas forças que em algum momento no passado levaram à subordinação das mulheres, será capaz de influenciar e alterar fundamentalmente a composição social que ocupa atualmente. Em outras palavras, as mulheres só podem se tornar verdadeiramente livres e iguais apenas em um mundo organizado por novas linhas sociais e de produção.

No entanto, isso não significa que a melhora parcial na vida das mulheres no âmbito do atual sistema não é possível. A solução radical para a questão dos trabalhadores só é possível com a reconstrução completa das relações produtivas modernas. Mas isso deve nos impedir de trabalhar para reformas que servem para satisfazer os interesses mais urgentes do proletariado? Pelo contrário, cada nova meta da classe operária representa um passo que conduz a humanidade para o reino da liberdade e da igualdade social: todo o direito que as mulheres ganham traz-lhe mais perto do objetivo conjunto de emancipação total.

A socialdemocracia foi a primeira a incluir no seu programa a demanda por igualdade de direitos das mulheres com os homens. O partido sempre exigiu em todos os lugares, nos seus discursos e na imprensa, a retirada de restrições que afetam as mulheres, e foi apenas a influência de tal partido que forçou outros partidos e governos a realizar reformas para mulheres. E, na Rússia, este partido não é apenas o defensor das mulheres em relação à sua posição teórica, mas sempre e em toda parte adere ao princípio da igualdade entre mulheres.

O que impede as nossas defensoras “dos direitos iguais”, neste caso, aceitar o apoio deste partido forte e experiente? O fato é que por mais “radicais” que as igualitárias possam ser, elas ainda permanecem fiéis à sua própria classe burguesa. No momento, a liberdade política é um pré-requisito essencial para o crescimento e o poder da burguesia russa. Sem ela, verifica-se que todo o seu bem-estar econômico foi construído sobre a areia. A demanda por igualdade política é uma necessidade para as mulheres decorrente da própria vida.

O slogan “o acesso às profissões” já não é suficiente, e apenas a participação direta no governo do país promete ajudar a melhorar a situação econômica das mulheres. Daí o desejo apaixonado das mulheres da média burguesia para o direito ao voto e, portanto, a sua hostilidade ao sistema burocrático moderno.

No entanto, as feministas em suas demandas por igualdade política são como irmãs estrangeiras, os amplos horizontes abertos pela aprendizagem socialdemocrata continuam a ser estranhos e incompreensíveis para elas. As feministas buscam a igualdade perante a sociedade de classes existente, de nenhuma maneira atacam a base desta sociedade. Elas estão lutando por privilégios para si, sem comprometer as prerrogativas e privilégios existentes. Não acusamos que as representantes do movimento de mulheres burguesas não entendem o problema, sua visão flui inevitavelmente da sua posição de classe.

A Luta pela Independência Econômica

Em primeiro lugar, devemos perguntar se um movimento unitário apenas de mulheres é possível em uma sociedade baseada em antagonismos de classe. O fato de que as mulheres que participam no movimento de libertação não representam uma massa homogênea é óbvio para qualquer observador imparcial.

O mundo das mulheres é dividido – como é a dos homens – em dois campos. Os interesses e as aspirações de um grupo de mulheres se aproximam à classe burguesa, enquanto o outro grupo tem ligações estreitas com o proletariado, e suas demandas para a libertação cobre uma solução completa para a questão das mulheres. Assim, embora ambos os lados sigam o tema geral de “liberação das mulheres”, os seus objetivos e interesses são diferentes. Cada um dos grupos parte inconscientemente dos interesses sua própria classe, o que dá um colorido específico de classe para os objetivos e tarefas definidas para si.

Apesar das exigências aparentemente radicais feministas, não se deve perder de vista o fato de que as feministas não podem, devido à sua posição de classe, lutar pela transformação fundamental da estrutura econômica e social contemporânea, sem a qual a libertação das mulheres não pode ser concluída.

Se em determinadas circunstâncias, as tarefas de curto prazo coincidem com os objetivos finais das mulheres das diferentes classes, no longo prazo, determinam a direção do movimento e as estratégias a serem seguidas são muito diferentes. Enquanto para as feministas alcançar a igualdade de direitos com os homens sob o atual mundo capitalista representa o suficiente, por si só, os direitos iguais no tempo presente para as mulheres proletárias, é apenas um meio para progressos na luta contra a escravidão econômica da classe trabalhadora. Feministas veem os homens como o inimigo principal, os homens que tomaram injustamente todos os direitos e privilégios para si, deixando as mulheres apenas cadeias e obrigações. Para elas, a vitória é ganha quando um privilégio desfrutado anteriormente exclusivamente pelo masculino é dado ao “sexo frágil”. Já as mulheres trabalhadoras têm uma visão diferente. Elas não veem os homens como o inimigo e opressor, no entanto, elas pensam nos homens como seus pares, que partilham com elas a monotonia da rotina diária e lutam com elas por um futuro melhor. A mulher e seu companheiro do sexo masculino são escravizados pelas mesmas condições sociais, pelas mesmas odiosas cadeias do capitalismo que oprimem as suas vontades e os privam das alegrias e encantos da vida. É certo que há vários aspectos específicos do sistema contemporâneo que são um duplo fardo sobre as mulheres, como também é verdade que as condições de trabalho dos salários às vezes convertem as mulheres trabalhadoras em competidoras e rivais dos homens. Mas nestas condições desfavoráveis, a classe trabalhadora sabe quem é o culpado.

As mulheres trabalhadoras, não menos do que o seu irmão na adversidade, odeiam este insaciável monstro de face dourada em que a única preocupação é extrair toda a seiva de suas vítimas e que crescem à custa de milhões de vidas e se arremete com igual ganância sobre os homens, as mulheres e crianças. São milhares de tópicos para abordar sobre a classe trabalhadora. As aspirações da mulher burguesa, por outro lado, parecem estranhas e incompreensíveis. Antipático para o coração do proletariado, não prometem à proletária esse futuro brilhante para o qual viram-se os olhos de toda a humanidade explorada.

O objetivo final das proletárias não impede, é claro, o desejo que têm de melhorar a sua situação no âmbito do sistema burguês existente. Mas a realização desses desejos é constantemente prejudicada por obstáculos decorrentes da própria natureza do capitalismo. Uma mulher pode ter direitos iguais e ser verdadeiramente livre apenas em um mundo onde o trabalho é socializado, harmônico e justo. As feministas não estão dispostas a entender isso e são incapazes de fazê-lo. Elas sentem que quando a igualdade é formalmente aceita pela letra da lei será capaz de conseguir um lugar confortável para elas no velho mundo de opressão, escravidão, servidão, lágrimas e dificuldades. E isso é verdade até certo ponto. Para a maioria das mulheres do proletariado, direitos iguais aos dos homens significa apenas uma parte igual da desigualdade, mas para as “poucas escolhidas”, para as mulheres burguesas, de fato, abre uma porta para novos direitos e privilégios que até agora só foram apreciados por homens de classe burguesa. Mas a cada nova concessão que a mulher burguesa consegue terá outra arma para explorar a mulher proletária e continuar a aumentar a divisão entre as mulheres dos dois campos sociais opostos. Os seus interesses se veriam mais claramente em conflito, as suas aspirações mais evidentemente em contradição.

Onde, então, está a “questão da mulher” geral? Onde está a unidade de tarefas e aspirações sobre o qual as feministas têm muito a dizer? Um olhar frio à realidade mostra que a unidade não existe e não pode existir. Em vão, as feministas tentam convencer-se de que a “questão da mulher” não tem nada a ver com a do partido político e que “a solução só é possível com a participação de todos os partidos e todas as mulheres”, como disse uma das feministas radicais da Alemanha, a lógica de eventos nos obriga a rejeitar essa ilusão reconfortante das feministas.

As condições e as formas de produção têm subjugado mulheres ao longo da história da humanidade, e as têm gradualmente relegadas para a posição de opressão e dependência em que a maioria delas têm-se mantido até agora.

Seria necessário um cataclismo colossal de toda a estrutura social e econômica antes que as mulheres pudessem começar a recuperar a importância e independência que perderam. As inanimadas, porém, poderosas condições de produção resolveram problemas que antes pareciam demasiadamente difícil até mesmo para os pensadores mais destacados. As mesmas forças que por milhares de anos escravizaram as mulheres agora, numa fase posterior do desenvolvimento, está conduzindo o caminho para a liberdade e independência.

A questão da mulher tornou-se importante para as mulheres das classes burguesas cerca de metade do século XIX: um tempo considerável depois que a mulher proletária tinha chegado ao campo de trabalho. Sob o impacto do sucesso monstruoso do capitalismo, as classes médias da população foram atingidas por ondas de necessidade. As mudanças econômicas tornaram instável a situação financeira das pequenas e médias burguesia, e as mulheres burguesas enfrentaram um dilema de proporções alarmantes: ou aceitar a pobreza ou ir direto para o trabalho. As esposas e filhas deste grupo social começaram a bater às portas das universidades, salões de arte, editoras, escritórios, inundando as profissões que estavam abertas para elas. O desejo de mulheres burguesas para obter acesso a ciência e os maiores benefícios da cultura não era o resultado de uma súbita necessidade, maduro, mas veio da mesma questão do “pão de cada dia”.

As mulheres burguesas encontraram, desde o primeiro momento, forte resistência dos homens. Foi travada uma batalha tenaz entre homens profissionais, apegados aos seus “pequenos e confortáveis ​​empregos” e as mulheres que eram novatas em matéria de ganhar seu pão de cada dia. Essa luta resultou no “feminismo”: a tentativa de mulheres burguesas ficarem unidas e medir suas forças contra o inimigo comum, contra os homens. Quando essas mulheres entraram no mundo do trabalho se referiam a si mesmas orgulhosamente como a “vanguarda do movimento de mulheres”, elas esqueceram que, neste caso, a conquista da independência econômica, como em outros lugares, estavam andando nas pegadas de suas irmãs proletárias e colhendo os frutos dos esforços de suas mãos empoladas.

Então é realmente possível falar de feministas como as pioneiras no caminho para o trabalho das mulheres, quando em cada país centenas de milhares de mulheres proletárias tinha inundado fábricas e oficinas, apreendendo um ramo da indústria uma após a outra, antes mesmo do movimento de mulheres burguesas ter nascido? Só através do reconhecimento do trabalho das mulheres trabalhadoras no mercado mundial as mulheres burguesas puderam ocupar a posição independente na sociedade que tanto as feministas se orgulham.

Achamos difícil apontar um único evento na história da luta das mulheres proletárias para melhorar as suas condições materiais em que o movimento feminista em geral, tem contribuído significativamente. Seja qual for o que as mulheres proletárias conseguiram melhorar em seus padrões de vida, é o resultado dos esforços da classe trabalhadora em geral e, delas mesmas em particular. A história da luta das mulheres trabalhadoras para melhorar as suas condições de trabalho e uma vida mais digna é a história da luta do proletariado pela libertação.

O que força os proprietários da fábrica a aumentar o preço do trabalho, reduzir as horas de trabalho e introduzir melhores condições de trabalho, se não o medo de uma grave explosão de insatisfação do proletariado? O que, se não o medo de “disputas trabalhistas”, convence o governo a introduzir legislação para limitar a exploração do trabalho pelo capital?

Não existe um único partido no mundo que assumiu a defesa das mulheres, como o socialdemocrata defendeu. A mulher trabalhadora é antes de tudo um membro da classe trabalhadora, e quanto mais satisfatória seja a posição e do bem-estar geral de cada membro da família proletária será o maior benefício a longo prazo para o conjunto da classe operária.

Tendo em vista as crescentes dificuldades sociais, a lutadora devota à causa deve encontrar-se em uma triste perplexidade. Ela não pode se não, ver o quão pouco que o movimento geral das mulheres tem feito pelas mulheres proletárias, que são incapazes de melhorar as condições de trabalho e de vida da classe proletária. O futuro da humanidade deve parecer cinza, apagado e incerto para aquelas mulheres que estão lutando por igualdade, mas que ainda não adotaram a perspectiva mundial do proletariado, ou não desenvolveram uma fé firme na vinda de um sistema social mais perfeito. Enquanto o mundo capitalista atual permanece inalterado, a libertação deve parecer incompleta e tendenciosa. Que o desespero deve abraçar as mais pensativas e sensíveis dessas mulheres. Apenas a classe trabalhadora é capaz de manter a moral em um mundo moderno com suas relações sociais distorcidas. Com passo firme e medidos para a frente de forma constante em direção a seu objetivo, atrai as mulheres trabalhadoras às suas fileiras. A mulher proletária bravamente começou o caminho espinhoso do trabalho assalariado. Suas pernas fraquejam, seu corpo se desgasta. Há precipícios perigosos ao longo do caminho, e predadores cruéis estão caçando.

Mas apenas tomando este caminho as mulheres serão capazes de alcançar esse distante, mas atraente alvo: sua verdadeira libertação em um novo mundo do trabalho. Durante este passo difícil para o futuro brilhante, a mulher trabalhadora, até recentemente humilhada, uma oprimida escrava sem direitos, aprende a se livrar da mentalidade de escrava a que tinha apreendido e passo a passo transforma-se em uma trabalhadora independente, uma personalidade independente, livre no amor. É ela, que lutando nas fileiras do proletariado, que garante às mulheres o direito ao trabalho, é a operária que prepara o terreno para a futura esposa “livre” e “igual”.

Por que razão, então, a mulher trabalhadora deve buscar uma união com as feministas burguesas? Quem, de fato, seria beneficiada no caso de tal aliança? Certamente, não a mulher trabalhadora. Ela é a sua própria salvadora, seu futuro está em suas próprias mãos. As mulheres trabalhadoras protegem seus interesses de classe e não se deixam enganar pelos grandes discursos sobre o “mundo compartilhado por todas as mulheres.” As mulheres trabalhadoras não devem esquecer e não se esquecem que, embora a meta de mulheres burguesas é para garantir seu bem-estar no contexto de uma sociedade antagonista, o nosso objetivo é construir no local do velho mundo, obsoleto, um templo brilhante de trabalho universal, solidariedade fraterna e alegre liberdade.

O Casamento e o Problema Familiar

Vamos voltar nossa atenção para outro aspecto da questão feminina, o problema da família. É bem conhecida a importância para a real emancipação da mulher resolver este problema complexo. A aspiração das mulheres à igualdade de direitos não pode ser plenamente satisfeita apenas pela luta por emancipação política, a obtenção de um doutoramento ou outras qualificações acadêmicas, ou um salário igual ao mesmo posto de trabalho. Para se tornar verdadeiramente livre, a mulher deve desatar as correntes que o joga sobre a forma atual, antiquada e opressiva da família. Para as mulheres, a solução para o problema familiar não é menos importante do que a conquista da igualdade política e o estabelecimento da independência econômica completa.

As formas atuais, estabelecidas pela lei e costume, da estrutura familiar faz com que a mulher esteja oprimida não só como pessoa, mas também como uma esposa e mãe. Na maioria dos países civilizados, o Código Civil coloca as mulheres em situação de maior ou menor dependência dos homens, e dá ao marido e ao direito de dispor dos bens de sua esposa e reinar sobre sua moral e fisicamente.

E onde acaba a escravatura familiar oficial, legalizada, começa a “opinião pública” para exercer os seus direitos sobre as mulheres. Esta opinião pública é criada e mantida pela burguesia, a fim de proteger a “instituição sagrada da propriedade”. Ele serve para reafirmar uma hipócrita “dupla moral”. A sociedade burguesa aprisiona as mulheres em uma situação financeira intolerável, pagando um salário ridículo pelo seu trabalho. A mulher está privada do direito de um cidadão de levantar a voz para defender seus interesses pisoteados, e tem a grande bondade de oferecer esta alternativa: ou o jugo conjugal ou a prostituição, que abertamente é desprezada e condenada, mas secretamente, apoiada e sustentada.

É necessário insistir nos aspectos sombrios da vida de matrimonial hoje, sobre o sofrimento das mulheres que estão intimamente ligadas às estruturas familiares atuais. Há muito o que há dito sobre este assunto. A literatura está cheia de caixas-pretas que pintam a nossa desordem familiar e matrimonial. Neste campo, quantas tragédias psicológicas, quantas vidas mutiladas, quantas existências envenenadas! Por enquanto, só importa ressaltar que a atual estrutura familiar oprime as mulheres de todas as classes e condições sociais. Costumes e tradições perseguem a mãe solteira da mesma forma, seja qual for o setor da população a que pertence, as leis colocam sob a tutela do marido tanto a mulher burguesa, como a proletária e a camponesa.

Descobrimos, finalmente, um aspecto da questão feminina sobre o qual as mulheres de todas as classes podem participar? Elas não podem lutar juntas contra as condições que as oprimem? Será que o sofrimento comum, a dor comum apaga o abismo do antagonismo de classe e cria uma comunidade de aspirações e tarefas para as mulheres de diferentes planos? É viável, com os desejos e objetivos, uma colaboração das burguesas e proletárias? Afinal, as feministas lutam simultaneamente para alcançar formas mais livres do casamento e do “direito à maternidade” levantam suas vozes em defesa da prostituta, a que todos assediam. Observe como literatura feminista é rica em buscar novos estilos de união do homem e da mulher e dos esforços corajosos para “igualdade moral” entre os sexos. Não é verdade que, enquanto no campo da liberalização econômica as burguesas se situam na retaguarda do exército das milhões de proletárias, que abrem o caminho para a “nova mulher”, na luta para resolver os problemas familiares os reconhecimentos são das feministas?

Aqui na Rússia, mulheres de meia burguesia – ou seja, esse exército de mulheres que, possuindo uma situação independente, de repente se encontraram na década de 1860, lançadas no mercado de trabalho – resolveram na prática, individualmente, muitos aspectos embaraçosos da questão do casamento, pulando corajosamente acima do casamento religioso tradicional e substituindo a forma consolidada da família para união fácil de quebrar, o que corresponde melhor com as necessidades da camada intelectual, em movimento, da população. Mas, soluções individuais, subjetivas, desta questão não mudam a situação e nem abrandam o triste panorama geral da vida familiar. Se alguma força está destruindo a forma atual da família, não é o esforço mais ou menos fortes de indivíduos separadamente, mas as forças inanimadas e poderosas da produção, que estão intransigentemente construindo a vida em novas bases.

A luta heroica de jovens mulheres solteiras do mundo burguês, que desafiam e demandam da sociedade o direito de “ousar o amor” sem ordens ou correntes, deve servir como um exemplo para todas as mulheres definhando sob o peso das cadeias familiares: é o que pregam as feministas estrangeiras mais emancipadas e também as nossas modernas defensoras da igualdade aqui. Em outras palavras, segundo o espírito que anima as feministas, a questão do casamento será resolvida independentemente das condições ambientais, independentemente de uma mudança na estrutura econômica da sociedade, simplesmente graças aos esforços heroicos individuais e isolados. Simplesmente basta que as mulheres “desafiem” e o problema do casamento vai cair por sua própria inércia.

Mas as mulheres menos heroicas abanam a cabeça em dúvida: “está tudo muito bem para as heroínas dos romances em que um autor previdência uma renda confortável, bem como amigos abnegados e um charme extraordinário. Mas o que podem fazer aquelas sem salário suficiente, amigos, o qualquer recurso extraordinário? ” E, quanto a questão da maternidade, para as mulheres sedentas de liberdade? E o “amor livre”, é possível, viável, não como um isolado e excepcional, mas como um evento normal na estrutura econômica da sociedade de hoje, isto é, como norma vigente e reconhecido por todos? Pode ser ignorado elemento que determina a forma atual do casamento e da família, da propriedade privada? Pode, neste mundo individualista, inteiramente abolir a regulamentação do casamento sem que padeçam os interesses das mulheres? Pode-se abolir a única garantia que tem que nem todo o peso da maternidade recaia sobre ela? No caso de dar efeito a essa supressão, não aconteceria à mulher o que aconteceu com os trabalhadores? A remoção dos obstáculos causados ​​pelos regulamentos corporativos, sem que novas obrigações fossem instituídos para os empregadores, deixou os trabalhadores à mercê do poder capitalista descontrolado e o slogan sedutor de “associação livre de capital e trabalho” se transformou para uma forma descarada da exploração do trabalho nas mãos do capital. O “amor livre” sistematicamente introduzido na sociedade de classes atual, em vez de libertar as mulheres das dificuldades da vida familiar, não lastrará provavelmente como um novo encargo: a tarefa de cuidar sozinha e sem ajuda os seus filhos?

Apenas uma série de reformas radicais no âmbito das relações sociais, reformas através das quais as obrigações familiares recaiam sobre a sociedade e o Estado, criaria uma situação favorável para que o princípio do “amor livre” pudesse, em certa medida, ser realizado. Mas, podemos contar seriamente com isso no estado classista atual, por mais democrático que seja está disposto a assumir todas as obrigações relativas às mães e a geração mais jovem, ou seja, aquelas obrigações em relação ao momento de família como célula individualista? Apenas uma transformação radical das relações produtivas pode criar as condições sociais necessárias para proteger as mulheres contra os aspectos negativos decorrentes da fórmula elástica do “amor livre”. Realmente não vemos que confusões e que desordens dos costumes sexuais estão escondidos, nas atuais circunstâncias, muitas vezes em tal fórmula? Observe todos estes senhores, empresários e gerentes das sociedades industriais: muitas vezes não se aproveitam, ao seu modo, do “amor livre”, forçando as trabalhadoras, empregadas domésticas a se submeterem a seus caprichos sexuais, sob a ameaça de demissão? Os empregadores que humilham sua empregada e, em seguida, a colocam na rua, quando engravida, por acaso já não está se aplicando a fórmula de “amor livre”?

“Mas nós não estamos falando sobre esse tipo de “liberdade” – opõem-se as defensoras da união livre – pelo contrário, exigimos a instauração de uma “moral única”, igualmente obrigatória para o homem e a mulher. Nós nos opomos a desordem dos costumes sexuais de hoje, proclamamos que só pura a união livre fundamentada em um amor verdadeiro”. Mas, vocês não acham, queridas amigas, que o seu ideal de “união livre”, implementado na atual situação econômica e social, corre o risco de dar resultados que diferem um pouco da forma distorcida de liberdade sexual? O princípio do “amor livre” não pode entrar em vigor sem trazer mais sofrimento às mulheres mais do que quando ela se livrou das cadeias de materiais que agora as fazem duplamente dependentes: o capital e seu marido. O acesso das mulheres a um trabalho independente e autonomia econômica fez surgir uma certa possibilidade de “amor livre”, especialmente para as intelectuais que exercem as profissões que são melhor remuneradas. Mas a dependência das mulheres com relação ao capital ainda segue, e ainda se agrava à medida que cresce o número mulheres proletárias empurradas para vender sua força de trabalho. O slogan do “amor livre” pode melhorar a situação dessas mulheres que ganham apenas o mínimo para não morrer de fome? E, além disso, o amor livre não é tão amplamente praticado na classe trabalhadora, na medida em que mais de uma vez a burguesia fez soar o alarme e denunciou a “depravação” e “imoralidade” do proletariado? Cabe notar que, quando as feministas falam com entusiasmo sobre as novas formas de união extraconjugal para as burguesas emancipadas, dar-lhes o belo nome de “amor livre”. Mas quando se trata da classe trabalhadora, as mesmas uniões extraconjugais são vituperadas com o termo depreciativo de “relações sexuais desordenadas”. É bastante significativo.

No entanto, para a proletária, dadas as condições atuais, as consequências da vida em conjunto, seja ela de origem livre ou consagrado pela Igreja, permanecem igualmente dolorosas. Para a esposa e a mãe proletária, a chave para o problema conjugal e da família não está em suas formas externas, rituais ou civis, mas em condições econômicas e sociais que determinam estas relações familiares complexas que deve enfrentar a mulher da classe trabalhadora. Claro, também é importante saber se o seu marido pode dispor dos salários que ela ganhou, se um marido tem o direito de forçá-la a viver com ele mesmo contra sua vontade, se ele pode remover as crianças pela força, etc., mas não são esses parágrafos do Código Civil que determinam a situação real das mulheres na família, e não serão resolvidos neles o difícil problema familiar. Seja a união legalizada perante um notário, consagrada pela Igreja ou com base no princípio do consentimento, a questão do casamento iria perder a sua relevância para a maioria das mulheres se, e somente se, tal sociedade se livrar das mesquinhas preocupações de casa, hoje inevitável neste sistema de famílias individuais e dispersas. Ou seja, se a sociedade assumir o cuidado das gerações mais jovens, se for capaz de proteger a maternidade e dar a cada criança uma mãe, pelo menos durante os primeiros meses.

As feministas estão lutando contra um fetiche: o casamento legalizado e consagrado pela Igreja. As mulheres proletárias, por outro lado, lutam contra as causas que levaram à atual forma de matrimônio e da família, e quando elas se esforçam para mudar essas condições de vida, sabem que também estão contribuindo para a reforma das relações entre os sexos. É aí que reside a principal diferença entre a abordagem da burguesia e do proletariado para resolver o complexo problema da família.

Ingenuamente acreditando na possibilidade de criação de novas formas de relações conjugais e familiares sobre o pano de fundo sombrio da sociedade de classes contemporânea, as feministas e os reformadores sociais pertencentes à burguesia buscam dolorosamente essas novas formas. E já que a vida, por si própria, ainda não as criou, eles precisam inventar a todo custo. Deveriam ser, na sua opinião, as formas modernas das relações sexuais que são capazes de resolver o complexo problema da família sob o sistema social vigente. E os ideólogos do mundo burguês – jornalistas, escritores e mulheres proeminentes que lutam pela emancipação – propõem, cada um do seu lado, a sua “panaceia familiar”, sua nova “fórmula do casamento”.

Como soam utópicas estas fórmulas de casamento! Quão débeis estes paliativos, quando considerados à luz da realidade dolorosa da nossa estrutura familiar moderna! A “união livre”, o “amor livre”! Para essas fórmulas possam ser efetuadas, é necessário proceder uma reforma radical de todas as relações sociais entre as pessoas. Além disso, é necessário que regras de moralidade sexual, e com elas toda a psicologia humana, sofram uma profunda evolução, uma evolução fundamental. Será que a psicologia humana atual está realmente disposta a aceitar o princípio do “amor livre”? E os ciúmes, que consomem as melhores almas humanas? E esse sentimento, tão profundamente enraizado, os direitos de propriedade não só no corpo, mas também a alma do companheiro? E a incapacidade de inclinar-se com simpatia frente a uma manifestação da individualidade da outra pessoa, o habitual costume de “dominar” o ser amado ou ser seu “escravo”? E esse sentimento amargo, mortalmente amargo, abandono e infinita solidão que se apodera de nós, quando o ser amado já não nos ama e nos deixa? Onde pode encontrar confortar a pessoa solitária? A “coletividade” na melhor das hipóteses, é “um objetivo” para a qual dirigir as forças morais e intelectuais. Mas as pessoas de hoje são capazes de comungar com essa coletividade, a ponto de sentir a influência da interação entre si? Será que a vida coletiva pode por si só substituir a pequena alegria pessoal do indivíduo? Sem uma alma que está perto, uma “única” alma gêmea, até mesmo um socialista, mesmo um coletivista está infinitamente sozinho em nosso mundo hostil, e só na classe trabalhadora podemos vislumbrar o brilho pálido anunciando novos relacionamentos, mais harmoniosos e espírito mais social entre as pessoas. O problema da família é tão complexo, confuso e múltiplo como a própria vida, e não será nosso sistema social que permitirá resolvê-lo.

Outras fórmulas de casamento têm sido propostas. Várias mulheres progressistas e pensadores sociais consideram a união do casamento apenas como um método de produzir prole. O casamento em si, eles argumentam, não tem nenhum valor especial para as mulheres: a maternidade é a sua finalidade, seu objetivo sagrado, a sua missão na vida. Graças a tais defensoras inspiradas como Ruth Bray e Ellen Key, o ideal burguês reconhece a mulher como fêmea, e não como uma pessoa que adquiriu uma aura especial do progressismo. A literatura estrangeira aceitou entusiasticamente o lema proposto por estas mulheres modernas. E mesmo aqui, na Rússia, no período antes da tempestade política (1905) período, antes que os valores sociais foram revistos, a questão da maternidade tinha atraído a atenção da imprensa diária. O slogan “o direito à maternidade” não pode ajudar a produzir uma resposta animada nos círculos mais amplos da população feminina. Assim, apesar do fato de que todas as propostas para as feministas, neste contexto, foram de natureza utópica, o problema era muito importante e atual para não atrair as mulheres.

O “direito à maternidade” é o tipo de problema que afeta não só as mulheres da classe burguesa, mas também em um ainda maior grau, as mulheres proletárias. O direito a ser mãe – estas são palavras bonitas que vão diretamente para o “coração de qualquer mulher” e que faz o coração bater mais rápido. O direito de alimentar ao “próprio” filho com seu leite, e assistir os primeiros sinais de despertar da sua consciência, o direito de cuidar de seu corpo minúsculo e proteger a sua alma delicada dos espinhos e dos sofrimentos dos primeiros passos de vida: que mãe não iria apoiar estas alegações?

Parece que, novamente, nos deparamos com um problema que poderia servir como um momento de unidade entre mulheres de diferentes estratos sociais: pode parecer que temos finalmente a ponte entre as mulheres dos dois mundos hostis. Vamos dar uma olhada mais de perto para descobrir o que as mulheres burguesas progressistas entendem como “o direito à maternidade”. Então, podemos ver se a mulher proletária, de fato, pode concordar com as soluções para o problema da maternidade fornecidas pelas igualitárias burguesas. Aos olhos de suas entusiastas apologistas, a maternidade tem um caráter quase sagrado. Lutando para quebrar os falsos preconceitos que marcam uma mulher por se engajar em uma atividade natural – ao dar à luz a um filho –, porque a atividade não tem sido santificada por lei, as lutadoras, pelo direito à maternidade, lutam em outra direção: para elas, a maternidade tornou-se o objetivo da vida de uma mulher.

A devoção de Ellen Key para as obrigações da maternidade e da família lhe obriga a oferecer uma garantia de que a unidade familiar isolada continuará a existir mesmo em uma sociedade transformada em termos socialistas. A única mudança, como ela o vê, é que todos os elementos acessórios que envolvem uma vantagem ou benefício material será excluído da união matrimonial, que será realizada de acordo com as inclinações mútuas, sem cerimônias ou formalidades: amor e casamento serão verdadeiramente equivalentes. No entanto, a unidade familiar isolada é o resultado do moderno mundo individualista, com a sua luta pela sobrevivência, a pressão, a solidão, a família é um produto do monstruoso sistema capitalista. E Key espera que chegue a família sociedade na socialista! Sangue e os laços de parentesco agora servem, muitas vezes, é verdade, como o único apoio da vida, como o único porto seguro em tempos de dificuldades e infelicidade. Mas vai ser moral ou socialmente necessário no futuro? Key não responde a esta pergunta. Ela tem muito em consideração à “família ideal”, esta unidade egoísta da pequena burguesia a que os devotos de estrutura burguesa da sociedade olham com tanta admiração.

Mas a talentosa e mais imprevisível Ellen Key não é a única que perde o norte em contradições sociais. Não há provavelmente nenhuma outra questão, como casamento e família sobre o qual há tão pouco acordo entre os socialistas. Se organizássemos uma pesquisa entre os socialistas, o resultado provavelmente seria muito curioso. Será que a família é um peso? Ou há razões para acreditar que os problemas familiares hoje são apenas uma crise passageira? Será que a forma atual da família na sociedade do futuro se conservaria, ou será enterrada junto com o sistema capitalista moderno? Estas são perguntas que bem podem obter respostas bastante diferentes.

Com a passagem da função educativa da família para a sociedade irá desaparecer os últimos laços que mantém unida a célula familiar. A família burguesa começará a desintegrar-se ainda mais rápido e na atmosfera de mudança, veremos desenhar-se com nitidez as silhuetas ainda indefinidas de relações conjugais futuras. Que silhuetas confusas são essas, que ainda estão imersos nas brumas das influências atuais?

É necessário repetir que a forma opressiva atual do matrimônio dará espaço do casamento para a união livre de indivíduos que se amam? O ideal de amor livre, apresentado à imaginação das mulheres que lutam por sua emancipação, certamente corresponde até certo ponto com a pauta das relações entre os sexos, que se introduzirá na sociedade coletivista. No entanto, as influências sociais são interações tão complexas e tão diversas que agora é impossível imaginar exatamente como serão as relações do futuro, quando todo o sistema mudar radicalmente. Mas a lenta evolução das relações entre os sexos, que acontece diante dos nossos olhos atesta claramente que o ritual de casamento e a família constritiva e fechada estão condenados à extinção.

A Luta por Direitos Políticos

As feministas responder às nossas críticas dizendo: mesmo que pareçam equivocados os argumentos que estão por trás da nossa defesa dos direitos políticos das mulheres, podem ser reduzidos a importância da própria demanda, que é igualmente urgente para as feministas e para as representantes da classe trabalhadora? Não podem as mulheres de ambas classes sociais, para o bem de suas aspirações políticas comuns, superar os obstáculos de antagonismos de classe que as separam? Não serão capazes de, seguramente, travar uma luta comum contra as forças hostis que as rodeiam? A divisão entre a burguesia e o proletariado é tão inevitável como outras questões que nos preocupam, mas no caso desta questão em particular, as feministas acreditam que as mulheres de diferentes classes sociais não têm nenhuma diferença.

As feministas sempre voltam para esses argumentos com amargura e desconserto, vendo noções preconcebidas de fidelidade partidária na recusa das representantes da classe trabalhadora para unir forças com elas na luta pelos direitos políticos das mulheres. É realmente o caso? Existe uma identificação completa das aspirações políticas ou, neste caso, como em todos os outros, o antagonismo cria um exército de mulheres indivisíveis, acima das classes? Devemos responder a esta questão, antes de podermos definir as táticas que as mulheres proletárias utilizarão para a obtenção dos direitos políticos para o seu sexo.

As feministas afirmam estarem do lado da reforma social, e algumas delas inclusive dizem apoiar o socialismo – em um futuro distante, é claro, mas não pretendem lutar nas fileiras da classe trabalhadora para atingir esse objetivo. As melhores delas acreditam, com ingênua sinceridade, que uma vez que os lugares dos deputados estiverem à sua disposição serão capazes de curar as feridas sociais que se formaram, na sua opinião, porque os homens, com seu egoísmo inerente, foram os donos da situação. Apesar das boas intenções dos vários grupos individuais de feministas para com o proletariado, sempre que se levantou a questão da luta de classes elas deixam o campo de batalha com medo. Reconhecem que não querem interferir em causa alheia, preferindo retirar-se para seu liberalismo burguês que é tão confortavelmente familiar.

Por mais que as feministas burguesas tentem suprimir o verdadeiro alvo dos seus desejos políticos, por mais que tentem garantir que suas irmãs “menores” participem na vida política prometendo benefícios imensuráveis ​​para mulheres da classe trabalhadora, o espírito burguês que permeia todo o movimento feminista dá um colorido de classe, até mesmo nas reivindicações por igualdade política iguais com os homens, o que pode parecer uma demanda geral para as mulheres. As diferenças dos objetivos e das interpretações de como devem usar os direitos políticos cria um abismo intransponível entre burgueses e proletários mulheres. Isso não contradiz com o fato de que as tarefas imediatas dos dois grupos de mulheres coincidem, em certa medida, posto que as representantes de todas as classes que tem chegado ao poder político se esforçam, especialmente, na obtenção de uma revisão do Código Civil, que em cada país, em maior ou menor grau, discrimina as mulheres. As mulheres pressionam para conseguir mudanças legais que criam condições de trabalho mais favoráveis ​​para elas, elas são mantidas unidas contra os regulamentos que legalizam a prostituição, etc. No entanto, a coincidência dessas tarefas imediatas é de caráter puramente formal. Assim, o interesse de classe determina que a atitude dos dois grupos para com estas reformas seja profundamente contraditória.

O instinto de classe – digam o que disserem, as feministas – sempre prova ser mais poderoso do que o nobre entusiasmo de políticas “acima das classes”. Enquanto as mulheres burguesas e as mulheres operárias são iguais em sua desigualdade, as primeiras podem, com toda a sinceridade, fazer grandes esforços para defender os interesses gerais das mulheres. Mas uma vez que superadas essas barreiras e mulheres burguesas ganharem acesso à atividade política, as defensoras atuais dos “direitos de todas as mulheres” vão se tornar defensores entusiastas dos privilégios da sua classe, se contentarão em deixar as trabalhadoras, sem quaisquer direitos. Então, quando as feministas falarem com as mulheres trabalhadoras sobre a necessidade de uma luta comum para obter algum princípio “geral das mulheres”, as mulheres da classe trabalhadora estão naturalmente desconfiadas.

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Contra o Liberalismo — Mao Tsé-Tung https://revistabacuri.editorialadande.com/contra-o-liberalismo-mao-tse-tung/ Sun, 29 Dec 2024 03:22:59 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=574 Nós somos pela luta ideológica ativa porque é uma arma para se alcançar a unidade interna do Partido e das demais organizações revolucionárias, em benefício do nosso combate. Cada membro do Partido Comunista, todo o revolucionário, deve empunhar essa arma. O liberalismo, porém, rejeita a luta ideológica e preconiza uma harmonia sem princípios, o que dá lugar a um estilo decadente, filisteu, e provoca a degenerescência política de certas entidades e indivíduos, no Partido e nas outras organizações revolucionárias. O liberalismo manifesta-se sob diversas formas: constatamos que alguém está a agir mal mas, como se trata de um velho conhecido, de um conterrâneo, de um co-discípulo, de um amigo íntimo, de uma pessoa querida, de um antigo colega ou subordinado, não nos empenhamos no debate de princípios e deixamos as coisas correr, preocupados com manter a paz e a boa amizade. Ou então, para mantermos a boa harmonia, não fazemos mais do que críticas ligeiras, em vez de resolver a fundo os problemas. O resultado é prejudicar-se tanto a coletividade como o indivíduo. Essa é uma primeira forma de liberalismo. Em privado entregamo-nos a críticas irresponsáveis, em vez de fazermos ativamente sugestões à organização. Nada dizemos de frente às pessoas, mas falamos muito pelas costas; calamo-nos nas reuniões, e falamos a torto e a direito fora delas. Desprezamos os princípios de vida coletiva e deixamo-nos levar pelas inclinações pessoais. É uma segunda forma de liberalismo. Desinteressamo-nos completamente por tudo que não nos afeta pessoalmente; mesmo quando temos plena consciência de que algo não vai bem, falamos disso o menos possível; deixamo-nos ficar sabiamente numa posição coberta e temos como única preocupação não ser apanhados em falta. É uma terceira forma de liberalismo. Não obedecemos a ordens, colocamos as nossas opiniões pessoais acima de tudo. Não esperamos senão atenções por parte da organização e repelimos a disciplina desta. Eis uma quarta forma de liberalismo. Em vez de refutar e combater as opiniões erradas, no interesse da união, do progresso e da boa realização do trabalho, entregamo-nos a ataques pessoais, buscamos questões, desafogamos o nosso ressentimento e procuramos vingar-nos. Eis uma quinta forma de liberalismo. Escutamos opiniões erradas sem elevarmos uma objeção e deixamos até passar, sem informar sobre elas,  expressões  contrarrevolucionárias,  ouvindo-as passivamente, como se de nada se tratasse. É uma sexta forma de liberalismo. Quando nos encontramos entre as massas, não fazemos propaganda nem agitação, não usamos da palavra, não investigamos, não fazemos perguntas, não tomamos a peito a sorte do povo e ficamos indiferentes, esquecendo-nos de que somos comunistas e comportando-nos como um cidadão qualquer.  É uma sétima forma de liberalismo. Vemos que alguém comete atos prejudiciais aos interesses das massas e não nos indignamos, não o aconselhamos nem obstamos à sua ação, não tentamos esclarecê-lo sobre o que faz e deixamo-lo seguir. Essa é uma oitava forma de liberalismo. Não trabalhamos seriamente, mas apenas para cumprir formalidades, sem plano e sem orientação determinada, vegetamos — “enquanto for sacristão, contentar-me-ei com tocar os sinos”. Essa é uma nona forma de liberalismo. Julgamos ter prestado grandes serviços à revolução e damo-nos ares de veteranos; somos incapazes de fazer grandes coisas mas desdenhamos as tarefas pequenas; relaxamo-nos no trabalho e no estudo. Eis uma décima forma de liberalismo. Cometemos erros, damo-nos conta deles mas não queremos corrigi-los, dando assim uma prova de liberalismo com relação a nós próprios. Eis a décima primeira forma de liberalismo. Poderiam citar-se outros exemplos mais, mas os onze acima indicados são os principais. Todos eles constituem manifestações do liberalismo. O liberalismo é extremamente prejudicial nas coletividades revolucionárias. É um corrosivo que mina a unidade, afrouxa a coesão, engendra a passividade e provoca dissensões. Priva as fileiras revolucionárias duma organização sólida e duma disciplina rigorosa, impede a aplicação integral da linha política e separa as organizações do Partido das massas populares colocadas sob a direção deste. É uma tendência extremamente perniciosa. A origem do liberalismo está no egoísmo da pequena burguesia, que põe em primeiro lugar os seus interesses pessoais, relegando para segundo plano os interesses da revolução. É dela que nasce o liberalismo ideológico, político e de organização. Os liberais consideram os princípios do Marxismo como dogmas abstratos. Aprovam o Marxismo mas não estão dispostos a pô-lo em prática, ou a pô-lo integralmente em prática; não estão dispostos a substituir o liberalismo pelo Marxismo. Armam-se tanto dum como doutro: falam de Marxismo mas praticam liberalismo; aplicam o primeiro aos outros e o segundo a si próprios. Levam os dois na bagagem e encontram uma aplicação para cada um. É assim que pensam certos indivíduos. O liberalismo é uma manifestação do oportunismo e está em conflito radical com o Marxismo. O liberalismo é a passividade. Objetivamente, serve o inimigo. É por essa razão que o inimigo se regozija quando o conservamos nas nossas fileiras. Tal é a natureza do liberalismo. Não deve pois haver lugar para ele nas fileiras da revolução. Penetrados do espírito ativo do Marxismo, devemos vencer a passividade do liberalismo.    Um comunista deve ser aberto, fiel e ativo, colocar os interesses da revolução acima da sua própria vida e subordinar os interesses pessoais aos interesses da revolução. Em todos os momentos, seja onde for que se encontre, ele deve ater-se aos princípios justos e travar uma luta sem tréguas contra todas as ideias e ações erradas, de modo a consolidar a vida coletiva do Partido e reforçar os laços existentes entre este e as massas; um comunista deve preocupar-se mais com o Partido e as massas do que com os seus interesses pessoais, e atender mais aos outros do que a si próprio. Só quem atua assim pode ser considerado comunista. Todos os comunistas fiéis, abertos, ativos e honestos, devem unir-se para lutar contra as tendências liberais de certos indivíduos entre nós, e conseguir chamá-los ao bom caminho. Essa é uma das nossas tarefas na frente ideológica.

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Nós somos pela luta ideológica ativa porque é uma arma para se alcançar a unidade interna do Partido e das demais organizações revolucionárias, em benefício do nosso combate. Cada membro do Partido Comunista, todo o revolucionário, deve empunhar essa arma.

O liberalismo, porém, rejeita a luta ideológica e preconiza uma harmonia sem princípios, o que dá lugar a um estilo decadente, filisteu, e provoca a degenerescência política de certas entidades e indivíduos, no Partido e nas outras organizações revolucionárias.

O liberalismo manifesta-se sob diversas formas: constatamos que alguém está a agir mal mas, como se trata de um velho conhecido, de um conterrâneo, de um co-discípulo, de um amigo íntimo, de uma pessoa querida, de um antigo colega ou subordinado, não nos empenhamos no debate de princípios e deixamos as coisas correr, preocupados com manter a paz e a boa amizade. Ou então, para mantermos a boa harmonia, não fazemos mais do que críticas ligeiras, em vez de resolver a fundo os problemas.

O resultado é prejudicar-se tanto a coletividade como o indivíduo. Essa é uma primeira forma de liberalismo.

Em privado entregamo-nos a críticas irresponsáveis, em vez de fazermos ativamente sugestões à organização. Nada dizemos de frente às pessoas, mas falamos muito pelas costas; calamo-nos nas reuniões, e falamos a torto e a direito fora delas. Desprezamos os princípios de vida coletiva e deixamo-nos levar pelas inclinações pessoais. É uma segunda forma de liberalismo.

Desinteressamo-nos completamente por tudo que não nos afeta pessoalmente; mesmo quando temos plena consciência de que algo não vai bem, falamos disso o menos possível; deixamo-nos ficar sabiamente numa posição coberta e temos como única preocupação não ser apanhados em falta. É uma terceira forma de liberalismo.

Não obedecemos a ordens, colocamos as nossas opiniões pessoais acima de tudo. Não esperamos senão atenções por parte da organização e repelimos a disciplina desta. Eis uma quarta forma de liberalismo.

Em vez de refutar e combater as opiniões erradas, no interesse da união, do progresso e da boa realização do trabalho, entregamo-nos a ataques pessoais, buscamos questões, desafogamos o nosso ressentimento e procuramos vingar-nos. Eis uma quinta forma de liberalismo.

Escutamos opiniões erradas sem elevarmos uma objeção e deixamos até passar, sem informar sobre elas,  expressões  contrarrevolucionárias,  ouvindo-as passivamente, como se de nada se tratasse. É uma sexta forma de liberalismo.

Quando nos encontramos entre as massas, não fazemos propaganda nem agitação, não usamos da palavra, não investigamos, não fazemos perguntas, não tomamos a peito a sorte do povo e ficamos indiferentes, esquecendo-nos de que somos comunistas e comportando-nos como um cidadão qualquer.  É uma sétima forma de liberalismo.

Vemos que alguém comete atos prejudiciais aos interesses das massas e não nos indignamos, não o aconselhamos nem obstamos à sua ação, não tentamos esclarecê-lo sobre o que faz e deixamo-lo seguir. Essa é uma oitava forma de liberalismo.

Não trabalhamos seriamente, mas apenas para cumprir formalidades, sem plano e sem orientação determinada, vegetamos — “enquanto for sacristão, contentar-me-ei com tocar os sinos”. Essa é uma nona forma de liberalismo.

Julgamos ter prestado grandes serviços à revolução e damo-nos ares de veteranos; somos incapazes de fazer grandes coisas mas desdenhamos as tarefas pequenas; relaxamo-nos no trabalho e no estudo. Eis uma décima forma de liberalismo.

Cometemos erros, damo-nos conta deles mas não queremos corrigi-los, dando assim uma prova de liberalismo com relação a nós próprios. Eis a décima primeira forma de liberalismo.

Poderiam citar-se outros exemplos mais, mas os onze acima indicados são os principais.

Todos eles constituem manifestações do liberalismo.

O liberalismo é extremamente prejudicial nas coletividades revolucionárias. É um corrosivo que mina a unidade, afrouxa a coesão, engendra a passividade e provoca dissensões. Priva as fileiras revolucionárias duma organização sólida e duma disciplina rigorosa, impede a aplicação integral da linha política e separa as organizações do Partido das massas populares colocadas sob a direção deste. É uma tendência extremamente perniciosa.

A origem do liberalismo está no egoísmo da pequena burguesia, que põe em primeiro lugar os seus interesses pessoais, relegando para segundo plano os interesses da revolução. É dela que nasce o liberalismo ideológico, político e de organização.

Os liberais consideram os princípios do Marxismo como dogmas abstratos. Aprovam o Marxismo mas não estão dispostos a pô-lo em prática, ou a pô-lo integralmente em prática; não estão dispostos a substituir o liberalismo pelo Marxismo. Armam-se tanto dum como doutro: falam de Marxismo mas praticam liberalismo; aplicam o primeiro aos outros e o segundo a si próprios. Levam os dois na bagagem e encontram uma aplicação para cada um. É assim que pensam certos indivíduos.

O liberalismo é uma manifestação do oportunismo e está em conflito radical com o Marxismo. O liberalismo é a passividade. Objetivamente, serve o inimigo. É por essa razão que o inimigo se regozija quando o conservamos nas nossas fileiras. Tal é a natureza do liberalismo. Não deve pois haver lugar para ele nas fileiras da revolução.

Penetrados do espírito ativo do Marxismo, devemos vencer a passividade do liberalismo.    Um comunista deve ser aberto, fiel e ativo, colocar os interesses da revolução acima da sua própria vida e subordinar os interesses pessoais aos interesses da revolução. Em todos os momentos, seja onde for que se encontre, ele deve ater-se aos princípios justos e travar uma luta sem tréguas contra todas as ideias e ações erradas, de modo a consolidar a vida coletiva do Partido e reforçar os laços existentes entre este e as massas; um comunista deve preocupar-se mais com o Partido e as massas do que com os seus interesses pessoais, e atender mais aos outros do que a si próprio. Só quem atua assim pode ser considerado comunista.

Todos os comunistas fiéis, abertos, ativos e honestos, devem unir-se para lutar contra as tendências liberais de certos indivíduos entre nós, e conseguir chamá-los ao bom caminho. Essa é uma das nossas tarefas na frente ideológica.

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ALN — História e Desenvolvimento – Iuri Xavier   https://revistabacuri.editorialadande.com/aln-iuri-xavier/ Sun, 29 Dec 2024 03:19:57 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=568 APRESENTAÇÃO Esse documento foi elaborado pelo companheiro Iuri Xavier Pereira em junho de 1971. Nasceu de uma necessidade que sentia a Organização de um relato e de uma análise de sua história e desenvolvimento. É certo que os ensinamentos só podem ser extraídos da prática, como é certo que só na prática podemos superar os nossos erros. Por outro lado, a prática da Ação Libertadora Nacional já contém ensinamentos importantes que algumas vezes, seja por deficiência de nossos combatentes ou seja por falta de uma consciente e bem executada transmissão de experiências, não são bem entendidos e aplicados, visando a melhoria de nossa atuação. Sabemos que nossa prática não tem sido retilínea, embora, constante. A renovação de quadros tem sido muito grande, e devido a isso, são bem poucos hoje em dia os companheiros que viveram todos os momentos da Organização, desde o lançamento da guerra revolucionária até hoje. Perdemos muitos combatentes e se não aproveitarmos as experiências que esses combatentes nos deixaram, elas se perderão no tempo e no espaço, trazendo sérios prejuízos à ALN e ao movimento revolucionário brasileiro. Yuri, neste documento, procura fazer um balanço da atuação da ALN, e, a partir daí, traçar algumas diretrizes a serem seguidas pela Organização. Buscava preencher um claro na teoria da Organização. Era sua intenção que o documento fosse discutido e enriquecido pela Coordenação Nacional, para que não fosse publicado como uma contribuição sua, e sim, como palavra oficial da direção. Infelizmente, fomos surpreendidos pelo seu assassinato em 14 de junho de 1972, antes que esse seu desejo se realizasse. Decidimos então publicá-lo como uma contribuição sua, sem quaisquer alterações, já que sua participação na discussão seria indispensável. Yuri Xavier Pereira, nasceu no Rio de Janeiro em 9 de agosto de 1948. Ingressou no PCB no início de 1965, onde sempre se destacou por sua dedicação à causa revolucionária. Foi membro do Comitê Secundarista, participando na preparação do VI Congresso do PCB. Saiu do PCB para a Ação Libertadora Nacional, tendo sido um dos responsáveis pela formação da organização na Guanabara (GB). Em 1968 viajou para Cuba onde adquiriu novas e importantes experiências na sua vida de revolucionário, comunista e combatente. Retornou em 1970, passando a ter uma atuação constante em São Paulo, tendo já neste ano, participado de ações armadas. Em 1971 e 1972, participou da maioria das ações realizadas pela ALN, tendo sempre se comportado como um exemplo para os revolucionários. Foi, ainda em 1968, um dos responsáveis pelo surgimento do jornal Ação Revolucionária na Guanabara. Sempre defendeu a criação de uma imprensa revolucionária que tivesse uma atuação constante. Participou ativamente de todos os números de “O Guerrilheiro” a partir de 1970. Colaborou na edição de “Venceremos”. Participou das discussões e deu colaboração para o documento “Política de Organização”. Participou decisivamente no processo de luta política e ideológica na ALN em 1971, tendo sido um dos que mais se bateram pela unidade da Organização. Fez parte da Coordenação Nacional da ALN desde a morte do companheiro Joaquim Câmara Ferreira, até sua morte, sendo um dos responsáveis pela sobrevivência, unidade e crescimento da Organização. Esses são, alguns aspectos da vida revolucionária do comunista Yuri Xavier Pereira. “Que outras mãos se levantem para empunhar seu fuzil.” Setembro de 1972  Ação Libertadora Nacional – ALN Veículo da Folha de São Paulo, que apoiou ativamente a ditadura militar fascista, incendiado pela ALN.  O momento que atravessa a Organização e o movimento armado é realmente crítico, necessitam medidas enérgicas e firmes, mas também cuidado nos passos a dar.   Em razão da situação presente há muitas dúvidas sobre o que fazer e como fazer; o que pensa a direção; qual a causa dos golpes sofridos. A teoria subestimada nos anos 1968/69, vai sendo exigência para explicar o que houve e indicar o que fazer. Esta questão deve ser entendida no sentido de que, se a tendência que predominava dentro da Organização em 68-69 de alergia a documentos e teoria foi em certo sentido errônea e prejudicial, a de hoje, que é uma exigência ansiosa dos mesmos em alguns companheiros, pela situação que enfrentamos podem também levar a erros e prejuízos. Deve-se estar consciente que não vamos subordinar nossa atividade à elaboração dos mesmos. Que em definitivo não são eles a reposta ao momento nem quem nos levará adiante. Os documentos também tem sua hora e sua vez, devem surgir naturalmente de uma prática e serem elaborados visando uma prática. Devem ser não só explicativos, mas terem igualmente o caráter de levarem à ação. Entretanto, é indiscutível que para superar este momento e levarmos eficazmente adiante a luta torna-se necessário dar um balanço na atividade passada da Organização. As dificuldades para isso são lógicas. O tipo de luta que travamos, a situação que enfrentamos ontem e hoje, dificulta quando não impedem o intercâmbio e o recolhimento de informações e experiências indispensáveis. A renovação de quadros imposta pela guerra, por exemplo, torna pequeno e disperso o número de companheiros que passaram por todo o processo da Organização (fundamentalmente o período 67-68). Assim, este material procura informar e explicar, dentro de uma visão geral, o que foi a Organização até agora, seu papel e atuação. Esta parte estará inevitavelmente incompleta quanto a detalhes, em parte pelos motivos expostos anteriormente, e todos os companheiros devem contribuir para seu aperfeiçoamento. A partir disto procura traçar as perspectivas que deve levar adiante a Organização. Esta é a parte mais importante. A sua compreensão e a decisão de lavá-la adiante são decisivas. A importância da primeira parte está em que é preciso uma compreensão geral acertada de nossa atividade anterior e do momento atual para traçar orientações corretas para o presente e o futuro.   Isto porque nossa pretensão não é elaborar a teria acaba da Revolução Brasileira, mas ter conhecimento indispensável do processo que nos permita melhor combater o inimigo, e naturalmente vencer. Agora, desde já alertamos que ao escrevermos este material partimos de algumas premissas, que são:        1 – Considerar justo o conceito de que a luta armada é

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APRESENTAÇÃO

Esse documento foi elaborado pelo companheiro Iuri Xavier Pereira em junho de 1971. Nasceu de uma necessidade que sentia a Organização de um relato e de uma análise de sua história e desenvolvimento.

É certo que os ensinamentos só podem ser extraídos da prática, como é certo que só na prática podemos superar os nossos erros. Por outro lado, a prática da Ação Libertadora Nacional já contém ensinamentos importantes que algumas vezes, seja por deficiência de nossos combatentes ou seja por falta de uma consciente e bem executada transmissão de experiências, não são bem entendidos e aplicados, visando a melhoria de nossa atuação.

Sabemos que nossa prática não tem sido retilínea, embora, constante. A renovação de quadros tem sido muito grande, e devido a isso, são bem poucos hoje em dia os companheiros que viveram todos os momentos da Organização, desde o lançamento da guerra revolucionária até hoje. Perdemos muitos combatentes e se não aproveitarmos as experiências que esses combatentes nos deixaram, elas se perderão no tempo e no espaço, trazendo sérios prejuízos à ALN e ao movimento revolucionário brasileiro.

Yuri, neste documento, procura fazer um balanço da atuação da ALN, e, a partir daí, traçar algumas diretrizes a serem seguidas pela Organização. Buscava preencher um claro na teoria da Organização.

Era sua intenção que o documento fosse discutido e enriquecido pela Coordenação Nacional, para que não fosse publicado como uma contribuição sua, e sim, como palavra oficial da direção. Infelizmente, fomos surpreendidos pelo seu assassinato em 14 de junho de 1972, antes que esse seu desejo se realizasse. Decidimos então publicá-lo como uma contribuição sua, sem quaisquer alterações, já que sua participação na discussão seria indispensável.

Yuri Xavier Pereira, nasceu no Rio de Janeiro em 9 de agosto de 1948. Ingressou no PCB no início de 1965, onde sempre se destacou por sua dedicação à causa revolucionária. Foi membro do Comitê Secundarista, participando na preparação do VI Congresso do PCB. Saiu do PCB para a Ação Libertadora Nacional, tendo sido um dos responsáveis pela formação da organização na Guanabara (GB).

Em 1968 viajou para Cuba onde adquiriu novas e importantes experiências na sua vida de revolucionário, comunista e combatente. Retornou em 1970, passando a ter uma atuação constante em São Paulo, tendo já neste ano, participado de ações armadas. Em 1971 e 1972, participou da maioria das ações realizadas pela ALN, tendo sempre se comportado como um exemplo para os revolucionários.

Foi, ainda em 1968, um dos responsáveis pelo surgimento do jornal Ação Revolucionária na Guanabara. Sempre defendeu a criação de uma imprensa revolucionária que tivesse uma atuação constante. Participou ativamente de todos os números de “O Guerrilheiro” a partir de 1970. Colaborou na edição de “Venceremos”. Participou das discussões e deu colaboração para o documento “Política de Organização”.

Participou decisivamente no processo de luta política e ideológica na ALN em 1971, tendo sido um dos que mais se bateram pela unidade da Organização. Fez parte da Coordenação Nacional da ALN desde a morte do companheiro Joaquim Câmara Ferreira, até sua morte, sendo um dos responsáveis pela sobrevivência, unidade e crescimento da Organização.

Esses são, alguns aspectos da vida revolucionária do comunista Yuri Xavier Pereira.

“Que outras mãos se levantem para empunhar seu fuzil.”

Setembro de 1972 

Ação Libertadora Nacional – ALN

Veículo da Folha de São Paulo, que apoiou ativamente a ditadura militar fascista, incendiado pela ALN. 

O momento que atravessa a Organização e o movimento armado é realmente crítico, necessitam medidas enérgicas e firmes, mas também cuidado nos passos a dar.  

Em razão da situação presente há muitas dúvidas sobre o que fazer e como fazer; o que pensa a direção; qual a causa dos golpes sofridos. A teoria subestimada nos anos 1968/69, vai sendo exigência para explicar o que houve e indicar o que fazer.

Esta questão deve ser entendida no sentido de que, se a tendência que predominava dentro da Organização em 68-69 de alergia a documentos e teoria foi em certo sentido errônea e prejudicial, a de hoje, que é uma exigência ansiosa dos mesmos em alguns companheiros, pela situação que enfrentamos podem também levar a erros e prejuízos. Deve-se estar consciente que não vamos subordinar nossa atividade à elaboração dos mesmos. Que em definitivo não são eles a reposta ao momento nem quem nos levará adiante. Os documentos também tem sua hora e sua vez, devem surgir naturalmente de uma prática e serem elaborados visando uma prática. Devem ser não só explicativos, mas terem igualmente o caráter de levarem à ação.

Entretanto, é indiscutível que para superar este momento e levarmos eficazmente adiante a luta torna-se necessário dar um balanço na atividade passada da Organização. As dificuldades para isso são lógicas. O tipo de luta que travamos, a situação que enfrentamos ontem e hoje, dificulta quando não impedem o intercâmbio e o recolhimento de informações e experiências indispensáveis. A renovação de quadros imposta pela guerra, por exemplo, torna pequeno e disperso o número de companheiros que passaram por todo o processo da Organização (fundamentalmente o período 67-68).

Assim, este material procura informar e explicar, dentro de uma visão geral, o que foi a Organização até agora, seu papel e atuação. Esta parte estará inevitavelmente incompleta quanto a detalhes, em parte pelos motivos expostos anteriormente, e todos os companheiros devem contribuir para seu aperfeiçoamento.

A partir disto procura traçar as perspectivas que deve levar adiante a Organização. Esta é a parte mais importante. A sua compreensão e a decisão de lavá-la adiante são decisivas. A importância da primeira parte está em que é preciso uma compreensão geral acertada de nossa atividade anterior e do momento atual para traçar orientações corretas para o presente e o futuro.  

Isto porque nossa pretensão não é elaborar a teria acaba da Revolução Brasileira, mas ter conhecimento indispensável do processo que nos permita melhor combater o inimigo, e naturalmente vencer.

Agora, desde já alertamos que ao escrevermos este material partimos de algumas premissas, que são:       

1 – Considerar justo o conceito de que a luta armada é o caminho da libertação de nosso povo.

2 – Igualmente acertada a estratégia da Organização.

3 – Que então o importante é ter esta estratégia clara e procurar corrigir os erros que cometemos em seu encaminhamento.

4 – Partir este encaminhamento desta estratégia e do material deixado por Marighella, que são sua expressão teórica.

Portanto, muita coisa que aqui não for abordada, ou for de maneira rápida e insuficiente, tem sua explicação nas premissas anteriores, devendo dar os companheiros a máxima importância ao estudo de materiais da Organização, estudo muito subestimado e conhecimento insuficiente em número enorme de combatentes  

I

Talvez ao golpe fascista do 1964 tenhamos quo reconhecer certa paternalidade de nossa Organização.

Até ele a política mais “avançada” e que determinava o caráter das atividades da esquerda era sem dúvida a do PCB. Sua irrealidade e falsidade foram demonstradas pelo golpe e a não oposição popular organizada ao mesmo, além de sua não previsão ao menos como alternativa reacionária viável à situação existente.

Os anos 1964-65 caracterizaram-se então por um profundo marasmo nas atividades de massas e de resistência à ditadura pelo movimento popular. A situação criada não era prevista nos manuais da esquerda, que não estava preparada para responder a ela, portanto, a perplexidade e imobilidade dominaram neste período.

A partir do 1966 iniciou-se em seu meio, paralelamente a um começo de movimento de masses basicamente estudantil, uma intensa discussão em que a tônica foi pôr em dúvida tudo. A prática anterior ao golpe, as razões deste, as concepções que a partir dele deviam-se materializar, a estratégia, as táticas, a existência e importância do Partido, etc.

São frutos dessa época: “Porque resistir à prisão” de 1965; “A crise brasileira”; “Lura interna e Dialética”, “Carta à Comissão Executiva” (em que pedia o desligamento desta) de 1966; “Ecletismo e Marxismo”, artigo de debates de 1967. E outros.

Estes materiais são importantes para entender esta época, assim como a evolução política de Marighella, cujo resultado é a nossa Organização.

Este período que abrange fundamentalmente 1966-67 caracterizou-se assim por um teoricismo muitas vezes um tanto confuso sobre o que fazer, as primeiras cisões dentro da esquerda e a restauração do mínimo de organização e atuação dentro do movimento de massas.

Poderíamos inserir aí o caso de Caparaó, de onde Marighella extraiu muitos ensinamentos.

A variedade e diversidade deste processo deve ser ressaltada, pois irá dar resultados significativos no futuro. Ou seja, esta discussão e seu resultado adquiriram vários níveis e formas em função do setor, Partido, Movimento e inclusive região onde se davam. Que fatores influíam para isto? As classes e camadas da nossa sociedade, a diversidade de nossa formação histórica, econômica, política, social, cultural, nossa dimensão geográfica, etc.

Em outras palavras a crise, seu encaminhamento e solução não podiam ser os mesmos, por exemplo, entre o movimento brizolista no sul, o Partido Comunista no leste e as Ligas Camponesas no Nordeste.

É o que Marighella caracterizou mais adiante como o desenvolvimento desigual do movimento revolucionário em nosso país.

II

Em termos esquemáticos poderíamos situar a passagem 1967- 68 como período decisivo da crise. As divisões se davam em base simplesmente de divergências no binômio linha pacífica – linha armada, mas que mantinham as mesmas estruturas organizativas e tinham dificuldades em deixar os antigos métodos de atuação se revelam insuficientes e incapazes.

O movimento de massas, especialmente estudantil e já também operário travavam lutas com a ditadura que exigiam e ofereciam a oportunidade do romper com as formas de resistência até ali empregadas.

Mas, o que deveria ser feito? Para grande parte da esquerda isto já estava claro em forma geral. A Luta Armada. Entretanto, como deveria ser realizada, como sair do círculo em que se mantinha a luta? As discussões eram infindáveis.

Aí jogou decisivo papel, Marighella. Além de seu passado havia adquirido enorme projeção por sua participação na Conferência da OLAS. Com sua extraordinária capacidade, inteligência e decisão, compreendeu que a saída para aquela situação era uma só. A Ação. Sair dos intermináveis debates e da luta armada escrita e falada para a praticada.

Se devia haver partido, se a estratégia era socialista, se a luta deveria ser o foco rural, se a China e a URSS ajudavam ou impediam nossa luta, que estrutura deveria criar-se, onde começar, etc. Ou seja, as discussões infindáveis e estéreis que pareciam criar abismos intransponíveis entre cada um dos grupos, assim como a compreensão clara do movimento armado, só poderiam ser superadas com a Ação.

A Ação naquele momento, praticada por todos, em todas as partes, de todas as maneiras. Seria ela quem definiria organização, estrutura, estratégia, tática, unidade, etc.

Então, que tarefas práticas tinha um grupo seja do Nordeste, Rio, São Paulo, Minas, Goiás, Rio Grande? Agir. Recolher amas e munições. Treinar tiro e marcha. Aprender a lidar com explosivo e rádio. Acumular remédios e aprender enfermagem. Reconhecer áreas. E atuar

Estas orientações, já começava a difundir Marighella através das “Cartas de Havana” e “Mensagens de Cuba” de 1967. Só temos compromisso com a Revolução; O dever de Todo Revolucionário é fazer a Revolução; Não pedimos licença para ninguém para praticar atos revolucionários.

Eram os princípios que Marighella incansavelmente repetia por todas as partes. Sabia que o importante neste momento era lutar, livrar das amarras, dar total iniciativa. Assim desencadeava-se a luta. O resto viria depois.

Um documento importante deste período é o “Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo”, de alguma circulação e que saiu publicado em O Guerrilheiro de abril de 1968. Lá se dizia: “Com este documento queremos deixar clara nossa disposição de lutar agora…”. Nele definiam-se as tarefas concretas que os grupos revolucionários deviam executar para o começo da luta.

A partir de 1968 desencadeiam-se as ações guerrilheiras nas principais cidades brasileiras em ritmo cada vez mais intenso. Apesar da diversidade assinalada do pensamento e perspectivas havia unidade. A unidade de ação.

Foi neste processo que formou-se a Organização. Porque a princípio havia o grupo de São Paulo e o de Minas, algo na Guanabara e contatos em alguns outros estados. O que os unia? A Ação e o pensamento e a orientação de Marighella. A partir desta prática e da definição e encaminhamento de tarefas foi criando-se entre entes grupos a unidade e coesão em torno de objetivos comuns. Clarificando a estratégia, forjando táticas, surgindo estruturas.

É deste período (setembro de 1968) o material “Algumas questões sobre as Guerrilhas no Brasil”, em que Marighella definia as diferentes fases da luta revolucionária no Brasil, seu cara- ter e objetivos.

Conjuntamente, o movimento de massas aumentava enormemente, tendo com pano de fundo a crise econômica. Nos setores operários as reivindicações, protestos e greves cresciam em número. A insatisfação das classes médias desiludidas, era também gritante e tinha sua expressão máxima no movimento estudantil que adquiriu extrema combatividade, desdobrando-se praticamente em todo o país. A “Marcha dos 100.000” foi um marco nestas manifestações.

Esta situação repercutia inclusive entre o meio político tradicional, levando-o à crise do Congresso com o caso Márcio Moreira Alves.

A crise política da ditadura acentuava-se, estando cada dia mais isolada. A solução encontrada foi uma feroz repressão e o golpe de outubro de 1968. A transformação da crise política em crise militar acentuava-se.

A partir do momento em que a brutal repressão impedia e tornava improdutiva a resistência popular à ditadura em forma de greves pacíficas, passeatas ou protestos e ainda eleições e formas organizativas legais, a luta de pequenos grupos de homens armados tornava-se a principal, mostrando sua plena validade e eficácia.

III

Assim, o ano de 1968 era encerado com um otimismo justificado. A iniciativa estava com o movimento revolucionário.

As ações aumentavam em número e qualidade, diversificando-se e pondo em xeque a ditadura.

Afirmava-se nesta luta nossa Organização e outras mais, aspecto este inevitável pelas características, ditas anteriormente, de nosso processo.

Mas a unidade não era algo impossível. Se demorada e difícil, era desejada e necessária. “A mesa de conferência já não une os revolucionários brasileiros”, para nós “unidade é potência de fogo”. Marighella compreendia que fortalecendo a Organização, aumentava o número de ações, desenvolvendo-se a luta, atuando em conjunto, a conseguiríamos, sem pressa nem prazos.         

No decorrer do ano 1969 era visível o apoio popular que tinha e ia em aumento este tipo de luta nas cidades. Nelas ia-se tornando cotidiana a violência revolucionária. A Organização crescia e estendia sua influência de maneira espetacular.

Com este quadro e a partir da experiência já adquirida, Marighella elabora uma série de materiais: “Algumas Questões de Organização” (documento de fundamental importância ao analisar nossos princípios de organização e a mudança que a luta traz à nossa estrutura); “Sobre Problemas e Princípios Estratégicos”, “Operações e Táticas Guerrilheiras”; “Sobre a Organização dos Revolucionários”; etc.

Define estratégia, difunde táticas. Dá estrutura, nome e linha à Organização (Programa). Nasce a ALN (Ação Libertadora Nacional). São expoentes deste período o “Minimanual do Guerrilheiro Urbano” no aspecto operativo, a definição do nome o programa da Organização, no aspecto organizativo.

A entrevista à revista Front (dezembro de 1969) talvez represente a essência do seu pensamento naquele momento.

Conflagrada a cidade, em particular o triângulo de sustentação, devia-se dar o passo que representaria um novo e decisivo salto de qualidade, a deflagração da guerrilha rural. Não como um foco, um grupo de homens isolados no meio rural que a partir de sua própria ação inicial contra as forças repressivas desenvolveria a luta. Mas sim como resultado de um planejamento e estratégia global que havia dado seu primeiro passo, ou seja, a conflagração do triângulo de sustentação do inimigo.

Agora a partir dos preparativos que se vinha realizando em diversas áreas do interior, competia “levar o mesmo terror de esquerda e a mesma inquietação no campo”, conflagrar o interior com о mesmo método empregado nas cidades, a ação de pequenos grupos armados. Naturalmente as características destas ações seriam distintas as praticadas nas cidades. Mas visavam o mesmo objetivo: levar a inquietação e a subversão ao campo, criando as condições para o início da guerrilha rural e a formação do Exército Revolucionário.

Já em 1968 ele havia definido as etapas da luta e a importância da guerrilha rural no material “Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil”. Agora aprofundava e definia as características das ações rurais neste período em outro material de enorme importância, a “Alocução sobre a Guerrilha Rural”.

A partir de meados de 1969 volte-se principalmente para ela, contando com o apoio das cidades conflagradas, a definição de áreas e um grupo de companheiros especialmente preparados. “Este será o ano da Guerrilha rural”, proclamou.

Entretanto, a partir principalmente de setembro, a Organização começa a receber uma série de golpes duríssimos que se sucedem e prolongam-se até atingir o próprio Marighella, em novembro.

IV

A pergunta inevitável é o que levou a esta situação. Os golpes recebidos pela Organização são explicados de que maneira?

Porque não se trata unicamente da morte de Marighella como um fato isolado, os golpes haviam-se iniciado antes o prosseguiram ainda depois do 4 de novembro, levando-nos a uma situação em que além das perdas sofridos, éramos uma série de grupos espalhados pelo país sem contatos entre si, isolados, sem perspectivas imediatas e o comando desagregado (Toledo, por exemplo, achava-se no exterior).

Tentar esmiuçar todos os erros seria no mínimo falho e alongado, assim pouco produtivo. Seria um “mea culpa” próprio de elementos com outra perspectiva que não a nossa. Achamos que a partir da exposição de duas ou três de suas manifestações principais é possível, seguindo suas coordenadas, achar e compreender os demais.

Estas falhas foram o espontaneísmo, a falta de uma unidade política e a inexperiência da guerra.  

Para romper o círculo vicioso em que se estava, Marighella lançou a palavra de ordem da ação. Esta era a que poderia romper com velhos esquemas, criar uma nova realidade. Além do que, se ele fosse discutir em base a documentos, programas, estratégia, pouco conseguiria. No mínimo permaneceria as infindáveis discussões, em torno de milhões de discordâncias quanto a estas questões. Assim, ao conversar com as pessoas ou grupos, o que ele desejava saber não era como pensavam que deveria ser luta armada e que objetivos se propunha a cada passo após a tomada do poder, mas sim se estavam dispostos a lutar agora, neste momento, em torno à guerrilha rural anti-imperialista e antioligárquica, e que atividade poderiam realizar para tal.

Deste modo estimulava ao máximo a iniciativa revolucionária e a autonomia da ação. Os debates sobre outros problemas estavam subordinados a esta prática. Alertava igualmente para o perigo do burocratismo ao se criarem as novas estruturas. Esta contribuição de Marighella foi decisiva naquele momento.

Mas se esta posição era justa em tal situação, com o decorrer da luta e a formação de nova realidade ela foi perdendo progressivamente seu valor (logicamente mantendo seu valor intrínseco). Isto porque já agora a luta criava necessidades e exigências que não se resolviam simplesmente com o fazer a guerra. Era preciso mais e mais entender e aplicar o como fazer a guerra de acordo aos objetivos que esta ia ajudando a clarificar.

Entretanto caímos, em certo grau, em um espontaneísmo em que os problemas eram resolvidos conforme apareciam e quase sempre que se tornavam inadiáveis.

Não se entendia que a uma mudança das condições objetivas e subjetivas deveria corresponder uma mudança na interpretação de uma série de palavras de ordem (não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários; o dever de todo revolucionário é fazer a revolução; etc.). Por medo ao burocratismo confundiu-se muitas vezes liberdade de ação e autonomia com indisciplina e não definição de estruturas e tarefas. Assim as coisas marchavam (ascendentes no período 1968-69), mas de um modo um tanto confuso e alimentadas principalmente pela decisão de lutar. O desejo do todos era participar de ações, houve certo culto ao guerrilheiro urbano (só considerado este o que participava do GTA), e as outras frentes eram pelo menos considerada de maneira bem secundárias e giravam quase que exclusivamente em torno do GTA (fato este visível em São Paulo, onde a Organização desenvolveu-se de forma mais ampla). Originou-se, por tais fatos, uma confusão e interpenetração enorme entre estes setores, reduzindo ao mínimo a compartimentação, o que veio causar graves prejuízos.

Deste espontaneísmo o ramo mais grave foi o não planejamento. Qualquer atividade humana pouco ou mais complexa exige programação para seu melhor avanço, mais ainda a realização de uma guerra. E planejamento onde se definissem objetivos e tarefas assim como prazos para sua concretização (prazos em guerra são sempre perigosos e flexíveis, mas em certa medida necessários para um efetivo controle), foi algo que em geral esteve ausente em nossa atuação. É claro que as dificuldades para tal saltam à vista quando se examina o processo de formação de nossa Organização e seu início de luta, mas poderíamos haver feito um maior esforço em tal sentido.

O trabalho rural do selecionamento de áreas e sua preparação também se ressentiu de um maior planejamento e controle. Onde iam surgindo possibilidades se procurava trabalhar, sem um escalonamento de importância. É lógico que isto devia-se à duas causas principais: nossa inexperiência neste terreno e em consequência a falta de quadros capacitados e o volume de recursos, sempre abaixo das necessidades, que a ele se destinavam, o que dificultava qualquer planejamento.

É verdade que Marighella tinha uma perspectiva global do processo e sabia em linhas gerais que caminhos devíamos percorrer entre cada etapa. Mas os comandos intermediários não tinham a mesma capacidade, nem ele conseguiu que sua visão fosse assimilada por eles. A situação evoluía de tal forma que a formação dos quadros era sempre insuficiente.

A unidade política deixou a desejar também. O núcleo principal de Organização tivera sua origem no PCB. Entretanto, mesmo entre este núcleo havia diferenças de perspectivas, já originadas na luta interna no PCB, que variavam de acordo com o setor e região de que provinham e a época em que ingressavam na Organização. Além disto, numerosos grupos e pessoas uniam-se a nós em diversos períodos e vindos das mais diversas origens. Este amálgama a princípio baseava sua unidade na ação e na orientação de Marighella. Contudo, ele não podia estar em todas as partes, as perspectivas da Organização devido às particularidades de nosso processo só iam-se criando uma mentalidade antiteoria, em que (devido às estéreis discussões do período anterior), o estudo e a discussão política foram muito subestimadas, quase não existiram. E procurava-se reduzir esta preocupação a uma manifestação do espírito burocrático, que é verdade subsistiu de alguma maneira em nossa Organização, pois não só as boas virtudes foram trazidas para nós, de contrabando vieram também doses de burocratismo, formas esquemáticas de pensar e agir, etc.

Isto levou a que, quando começaram a sair, mesmo os materiais da Organização não fossem encarados com a devida importância. Mais que estudados, compreendendo-se e assimilando-os para sua aplicação, eram lidos quase como uma obrigação. Associou-se documentos com partidos burocráticos, sendo, portanto, praticamente incompatíveis com uma organização revolucionária armada (“o que importa é a ação”). Outra das frases levadas ao extremo e aplicadas à todas as situações, sem a menor flexibilidade e una compreensão mais ampla do que seria ação revolucionária. Ela servia para encerrar qualquer debate.

O resultado maior disto é que a formação política ressentiu-se bastante. Íamos desenvolvendo-nos militarmente, porém o aspecto político (indispensável para o quadro político-militar), não acompanhava este ritmo. E se tal coisa dava-se em uma mesma estrutura a da Organização, as diferenças entre as estruturas, separadas pela distância geográfica e origens, eram maiores ainda, naturalmente.

Também neste aspecto não compreendemos de maneira suficiente, que se em certo período foi correta a pouca importância dada a documentos e discussões que se baseavam não em uma prática, mas em teoria e que em teoria igualmente ficavam, e a mudança de situação originada pela luta armada oferecia e exigia tais elementos, logicamente subordinados às condições da luta.

Assim, cono não podemos ter uma visão coesa em toda a Organização do que éramos, o que queríamos, e como queríamos, o trabalho desenvolvido apresentava desníveis de perspectivas nas diferentes estruturas (Rio, São Paulo, Minas, etc.).

Outro fator de muita importância foi nossa inexperiência militar em todos os seus aspectos, seja estratégico, tático ou técnico.

É verdade que se aprende a fazer a guerra, travando-a. Como em todas as atividades, é a sua prática quem ensina e transmite as indispensáveis experiências.

Mas para se travar uma guerra é necessário um mínimo de conhecimentos de sua arte e leis. E nossa inexperiência neste terreno era quase absoluta. Os métodos e princípios de atuação custaram-nos bastante caro em recursos e vidas para sua assimilação.

Igual acontecia quanto a parte técnica da mesma (conhecimento e manipulação de armamentos, equipamentos, explosivos, etc.). Esta ignorância era a causa da importância enorme dada por Marighella ao Centro de Aperfeiçoamento Guerrilheiro. Infelizmente os critérios de selecionamento para a aquisição da tais conhecimentos não foram dos melhores.

Ademais a guerra que começávamos a travar tinha um caráter específico, ou seja, era uma guerra revolucionária. Uma luta em que um punhado de homens propunha-se a derrubar um governo e regime infinitamente mais poderosos, mobilizando para tanto as classes e camadas sensíveis a seus objetivos, organizando-as e criando um Exército Popular Revolucionário. Uma luta em que, se impossível ser levada à vitória por um pequeno número de pessoas, devia ter cuidado em seu avanço e crescimento numérico, que poderia representar (dentro do cerco estratégico inimigo), um alvo mais fácil para a repressão.

Trazia-nos, portanto, alguns problemas particulares: como coordenar as exigências militares com as necessidades políticas? Que formas de organização e atuação eram corretas e seguras para ganhar e integrar na luta um número cada vez maior de pessoas?

As respostas a essas interrogações não eram fáceis, seja pelo nosso desconhecimento do como fazer a política através da guerra, seja pelos hábitos, preconceitos, sectarismos e burocratismos que em maior ou menor grau trazíamos de nossa prática anterior e que, como vícios, tínhamos dificuldades de nos livrar, transportando-os em parte à nova realidade, deformando-a.

V

Esta conjuntura no impediu o avanço do movimento armado (determinado por outros princípios), mas realizou-se em bases de pouca sustentação orgânica. Com o incremento das ações sobre estas bases, perdeu-se (aproximadamente de meados de 1969 em diante) o pulso da situação. O controle sobre as ações (não as ações em si como operações, mas de seu momento, caráter e objetivos), realizadas pelos grupos armados tornou-se difícil. Demos passos para os quais ainda não estávamos preparados.

Não se aplicou o princípio desenvolvido por Marighella, segundo o qual, após uma ação de grande envergadura ou um número razoável de ações é necessário dar um balanço das atividades realizadas. O desenvolvimento da infraestrutura não estava no mesmo diapasão do ritmo de ações.

No caso específico de São Paulo, o GTA passou a considerar-se a vanguarda e o ponto de referência de todas as coisas. Todos os outros setores (massas de sustentação principalmente) da Organização deviam estar a ele subordinados, levando na prática a que estes setores não tivessem uma perspectiva própria. Ainda que tivéssemos uma interpretação errônea do conceito de Marighella de que “para nós o fundamental é primeiro a ação e a estratégia” e que, portanto, “a Organização é consequência disso e surge simultaneamente com a ação revolucionária. A Organização surge pela base e não pela cúpula.” (“Sobre a organização dos revolucionários”). Não vimos (subestimamos como tal) primeiro que o trabalho das frentes de massas e sustentação é também ação revolucionária. E segundo se entendeu ser a “Organização como consequência da ação” como um processo espontaneísta em que bastava o detonante (a ação) para realizar o restante (a Organização). Assim, algumas teses estranhas à nossa estratégia começaram a ser desenvolvidas.

Marighella, cujo objetivo naquele momento era a deflagração da guerrilha rural, pensava ser o momento de uma pausa nas atividades destes grupos, aproveitando o volume de ações já realizadas e finalizando os preparativos na área rural. Quanto aos problemas com o GTA de São Paulo enviou uma carta, a “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, que deve ser estudada, pois suas premissas mantêm-se válidas. A origem desta carta foi que GTA estava criando alguns problemas de estruturas, perspectivas e atuação. Marighella, não podendo se deslocar para São Paulo no momento, enviou tal carta.

VI

Do lado inimigo, em linhas, o que sucedia? Encurralado pelas crises políticas de 1968, desorientado pelas ações revolucionárias armadas que iam em crescente ritmo, decretam o Ato Institucional nº 5 (AI-5), tornando ainda mais feroz a repressão.

A luta de pequenos grupos de homens armados, em 1969, assume indiscutivelmente a vanguarda na resistência à ditadura. 0 volume de ações seguia em aumento e mantínhamos a iniciativa.

Dois motivos principais concorriam para tal situação, apesar de nossas deficiências ditas acima. O primeiro, que esta forma de luta encontrava receptividade e absorvia a insatisfação popular na área urbana contra a ditadura. O segundo, o quase total despreparo da ditadura para enfrentar-nos, suas falhas políticas (não possuíam, por exemplo, instrumento político de consideração) e técnicas (insuficiência do armas, equipamentos, treinamentos, seus órgãos de segurança tendo atuação em separado), leva-os ao desespero e estupefação.

Acostumados à uma repressão dirigida aos movimentos de massas pacíficos ou às Organizações de esquerda tradicionais de pouca periculosidade em métodos e estruturas conhecidas, ao ver-se enfrentando formas de atuação novas no cenário revolucionário brasileiro, mostrando-se de uma primorosa ineficácia. Estes métodos, vinham a romper as regras de um jogo que bem gostariam de manter de forma indefinida.

Sua carência de informações era praticamente total. Mas o inimigo não permaneceu inativo. Buscou adotar as medidas que lhe permitissem recuperar a iniciativa. Para uma situação crítica tomaram as necessárias medidas drásticas. Fecharam o Congresso e cassaram mandatos, intensificaram a censura, aumentaram as prisões, redobraram a repressão e a tortura como política intimidatória.

Não descuidaram da parte técnica, incrementando o treinamento policial e aperfeiçoando seus métodos de investigação, tomando aí uma medida fundamental que é a centralização do controle da informação e repressão, criando a OBAN em São Paulo e o CODI na Guanabara. Aumentou sua potência de fogo e melhorou seu equipamento. Consequentemente o seu volume de informações e capacidade de reação e resposta, foram aumentando gradativamente.

Assim chegamos ao período final em 1969, onde os dois oponentes atingiram um clímax, expressado pelo sequestro do embaixador americano, mas em bases diferentes.

Enquanto o nosso não tinha como fruto uma infraestrutura que suportasse uma atividade brutal e eficiente da repressão, e permitisse como consequência um novo avanço na luta (naquele momento expressado no binômio: incremento e diversificação das ações urbanas – deflagração da guerrilha rural), o regime estava maduro para sua tarefa (cujo sinal evidente foi a troca de ditadores).

O resultado foi a sequência de quedas que atingiram um impressionante número de combatentes e pontos de apoio, chegando inclusive ao próprio Marighella.

Todas as quedas têm sua expressão técnica (falhas nas medidas de segurança), que julgamos importante divulgar e debater a fim de evitar, tanto quanto possível, sua repetição. Quanto as suas expressões políticas e organizativas, o quadro acima nos parece oferecer os dados para sua compreensão.

VII

Ao darmos um balanço neste período vemos que o principal aspecto positivo foi o desencadeamento da ação revolucionária.

“Solicitando demissão da atual Executiva – como o faço aqui – desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança.” (Carta à Executiva, dezembro de 1966)

O início da ação armada rompeu com o burocratismo, o convencionalismo e a estagnação que marcavam a atividade da esquerda no Brasil (com todos os seus matizes de momento).

Ela originou necessariamente una mudança de qualidade nas forças revolucionárias, propiciou a oportunidade de formação de um novo tipo de quadro revolucionário.

Obrigou a ditadura a um nível repressivo mais intenso, desmascarando-a ainda mais e desempenhando papel decisivo na transformação da crise política em crise militar.

Deu ao movimento revolucionário a perspectiva de se tornar uma alternativa real de poder e criar uma prática verdadeiramente brasileira, não saída dos manuais.

O principal aspecto negativo foi o espontaneísmo em nossa atividade. Ele levou a uma distorção em muitas de nossas concepções, a marcar nosso trabalho organizativo pela dispersão e a falta de planificação.

A formação política foi subestimada, ao atribuir em alguns instantes à ação armada um caráter absoluto.

Para estes termos contribui a prática anterior que tivemos, viciada, formal e sem imaginação.

Romper esta mentalidade representava sacrifícios e dificuldades, pelo costume e origem de classe de muitos dos que tivemos atuação neste momento.

O desconhecimento da guerra, e em consequência, de seus métodos de ação e de organização também contribuíram em nossos erros.

Igualmente a falta de unidade e dispersão de forças revolucionárias, mesmo sendo inevitáveis, tornou-se um fator de fraqueza para nós. Nossos golpes não tiveram a potência que poderiam encerrar.

VIII

Que caracterizou o ano de 1970? De nossa parte, sensível declínio nas atividades armadas e uma confusão no aspecto organizativo causados pelos golpes sofridos.

Além do número enorme de prisões, e em consequência, muitos setores e pessoas perderam-se da Organização, outros ficaram longo tempo desconectados.

A inexperiência no recebimento de golpes nesse nível e a falta de medidas de precaução quanto aos mesmos, dificultaram a reativação da luta.

O inimigo retomou a iniciativa, e a partir do alívio que consegui nas pressões econômicas, políticas e revolucionárias, além do número de informações que acumulou, as quais lhes proporcionaram um quadro do que éramos, quem éramos e o que queríamos, pode concentrar seus ataques de maneira eficiente no movimento armado.

Assim nossa atividade voltou-se para dois objetivos, a sobrevivência e a organização, num caráter essencialmente defensivo. Tais objetivos mostravam-se obsoletos e difíceis, devido às circunstâncias em que tínhamos de realizá-los.

Entramos em um círculo vicioso ao atingirmos determinada estabilidade (bastante relativa, logicamente), sofríamos novos golpes que impunham novas modificações em nossa estrutura e perspectivos, em círculos que pareciam repetir-se em períodos de intervalos bastante curtos.

Não conseguíamos obter um período mais longo em que uma estabilidade maior da Organização permitisse definição de tarefas e estruturas, e a retomada de um trabalho planejado.

Apesar destes fatos, lentamente íamos nos reestruturando, baseados nos núcleos antigos, nos setores recontatados e nas novas forças que vinham incorporar-se à luta.

Esta reestruturação permitiu que estabelecêssemos determinada estrutura no triângulo (Rio, São Paulo, Belo Horizonte) e pudéssemos terminar os preparativos em una área rural, o Pará, visando o desencadeamento de ações rurais que ofereciam a oportunidade de um salto de qualidade na situação que atravessávamos.

No entanto, a traição fez com que prestes a desencadearem-se as ações no campo, caísse Toledo, a figura de maior expressão de nossa Organização.

Se do ponto de vista organizativo, devido às experiências já acumuladas, sua queda não representou o mesmo que a de Marighella, é evidente que os planos tinham que sofrer alterações.

IX

Ao analisar a situação do movimento revolucionário, temos de entender algo básico sob pena de nossa análise perder muito de sua amplitude e eficácia.

Ou seja, se o processo que esmiuçamos e as tarefas e perspectivas que traçamos são os de nossa Organização, temos de compreender que de uma maneira ou de outra, variando as particularidades em função de suas características próprias, as dificuldades se apresentam em todas as organizações revolucionárias armadas.

A mudança na situação do movimento revolucionário não é algo que diga respeito, portanto, a uma só organização, nas ao conjunto de organizações.

É claro que a maneira como enfrentamos e resolvemos nossos problemas particulares muito ajudará (ou não, em função dos resultados obtidos), à situação como conjunto.

Mas ela por si só não resolverá o problema. A unidade e cooperação das forças revolucionárias continua, assim, na ordem do dia. É esta visão que devemos ter ao encaminhar as tarefas futuras.

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A

Em linhas gerais, quais são as características da situação atual? Conseguiu a ditadura solucionar seus principais problemas, mostrou a luta armada seu desacerto como estratégia de libertação?

A ditadura, entre 1968-69 foi obrigada a tomar uma série de medidas para responder às dificuldades que enfrentava.

No aspecto político dissolveu o Congresso e cassou mandatos, debilitando a “oposição” e depurando a Arena, que começavam a demonstrar por demais incômodos. Realizou mudanças na sua equipe no poder. Estabeleceu a censura oficial e nomeou os governadores, ampliou a repressão e institucionalizou a tortura.

Seus objetivos visavam principalmente o movimento revolucionário. Procurava debilitá-lo e evitar sua união, mediante o terror intimidatório, com as aspirações mais amplas do povo. Isto porque este, as ver bloqueadas e reprimidas suas reivindicações, tendia a se identificar com as ações armadas nos seus desejos de protestos.

Obtendo êxito no combate ao movimento revolucionário, que se havia tornado em seu principal problema, a ditadura conseguiu as condições necessários para a formulação posta em prática de suas soluções no campo econômico, político e militar.

 Através do terror policial e dos golpes dados aos movimentos armados, conseguiu paralisar as formas pacíficas de protesto e neutralizar o apoio às ações armadas.

Não tivemos condições de canalizar de maneira profunda e organizada a insatisfação popular, e a massa vendo com receio os golpes por nós recebidos, não nos dá de forma decidida seu apoio ativo.

Se a ditadura sabe não poder trazer para seu lado o povo, procura neutralizá-los, tornar a luta uma disputa entre as organizações revolucionárias e forças repressivas, onde estas últimas devido ao seu número e potência de fogo, naturalmente sairiam vencedoras, mais cedo ou mais tarde.

No campo econômico-social, os principais problemas estruturais, a ditadura (enquanto instrumento de dominação de classe e imperialista), não pode resolver. A solução destes problemas tem como condição e consequência sua própria extinção.

Mediante uma série de medidas nos planos creditícios, fiscais e administrativos, entre outros, que possibilitaram um planejamento e definição de políticas setoriais, e uma injeção fabulosa de investimentos estrangeiros, vê-se hoje no Brasil o que o regine alardeia como o “milagre econômico” brasileiro.

As características principais deste desenvolvimento, quais são? A mais importante é que tal desenvolvimento capitalista é condicionado por uma profunda penetração e dominação imperialista.

O controle por este exercido, vai se fortificando e alastrando por todos os setores da economia. A oligarquia nacional participa como sócia menor, usufruindo da parcela do bolo e servindo de carcereira.

Buscam também atrair para seu lado camadas de classe média, tanto nas cidades, onde incentivam o crescimento de uma camada de funcionários e técnicos visando ampliar o mercado interno, como no campo, onde tendo o mesmo objetivo atraem e auxiliam pequenos e médios produtores na ampliação e modernização da produção visando seu controle.

Nunca, como agora, foi tão grande a espoliação de nosso país pelo imperialismo e a exploração do povo visando a aferição de ganhos fabulosos pela grande burguesia e os senhores de terra.  A distribuição de riquezas do país mantém-se inalterada.

Em tal quadro alguém deve pegar esses privilégios. É a maioria do povo trabalhador, explorado e obrigado a formar com seu suor, o bolo a ser dividido pelo imperialismo, a oligarquia e seus asseclas menores.

Os operários têm seus salários reais diminuídos constantemente (os produtos a serem exportados, por exemplo, devem sair da mão-de-obra baratíssima, para poderem competir com as vantagens industriais e políticas que usufruem os monopólios internacionais concorrentes).

O número de desempregados é alarmante. A miséria é hoje tão comum e intensa nas cidades que nos ameaça de insensibilidade. No campo, a filosofia que orienta o regime, significa um número crescente de camponeses sem trabalho, sem terra.

Os quadros que por vezes transbordam o cinturão da censura e do desconhecimento, como os apresentados na seca, não são produtos de conjunturas climáticas ou econômicas, mas sim frutos permanentes de uma exploração desumana, expressões de um regime de propriedades e relações de produção caducos.

Assim, não podendo resolver os problemas estruturais de nossa sociedade, procura a ditadura encontrar soluções para que o imperialismo, a grande burguesia e os senhores de terras mantenham seus privilégios, de um lado, e de outro, que o povo participe com a sua cota (o trabalho e a exploração) para tal.

Desencadeou também uma imensa campanha publicitária, apoiando-se na vitória do campeonato mundial de futebol. A difusão de slogans “patriotas” importados da matriz é intensa. O aspecto “nacionalista” é demonstrado com uma série de medidas (as 200 milhas marítimas, entre outras). Sua “face humana” é visível por sua “preocupação” com a miséria do Nordeste e o abandono da Amazônia, sendo a solução encontrada a construção da Transamazônica, que transferirá a miséria e facilitará a exploração dos minérios da Amazônia pelas companhias estrangeiras (agora já estão realizando o levantamento aerofotogramétrico da região, a fim de melhor localizarem “nossas riquezas”). Os projetos de impactos, que em nada melhorarão as condições do povo, são evidências da “atenção do presidente” para com as classes trabalhadoras.

Seu objetivo aí também está claro, busca ganhar a neutralização e o apoio de parcelas da classe média, fundamentalmente. E, na verdade, não podemos dizer que não obteve êxitos.

Limpo o terreno político tradicional, bem definidas as regras do jogo, permitem a realização de eleições parlamentares. Apesar do alto número de abstenções, votos nulos e brancos, e da votação obtida pela “oposição” em alguns grandes centros urbanos, considera-se a ditadura vitoriosa nas urnas. A “vitória” do partido do governo (tão esmagadora que se sente preocupado com a sobrevivência da “oposição”), demonstra o “apoio popular” de que desfruta.

Outras medidas de “descompressão” no setor político estão condicionadas à evolução da situação e ao comportamento dos partidos oficiais.

No plano militar, que objetivos pretende? A ditadura tem consciência de que lhe é impossível exterminar o movimento armado nas cidades. Procura, entretanto, com golpes seguidos dados a este, mantê-lo em um nível para sua estrutura político-militar. Que não se torne uma real ameaça, canalizando e organizando o descontentamento e protesto popular.

Seu segundo grande objetivo é que tais golpes nos impeçam de levar a luta no campo, realizar a guerrilha rural, que integrará uma força potencialmente explosiva e esquecida no processo, о camponês.

B

Nesta situação, nosso objetivo geral é a retomada da iniciativa. Desenvolver tal atividade, que os passos dados na guerra e às medidas tomadas pela ditadura sejam condicionados pelo alcance de nossas perspectivas. E estas quais são?

“Em nossa maneira de pensar, a revolução no Brasil é a guerra revolucionária, em cujo centro se encontra a luta de guerrilhas. A tarefa estratégica fundamental da guerrilha brasileira é a libertação do Brasil, com a expulsão do imperialismo dos Estados Unidos. Falando em termos de guerra, essa tarefa estratégica fundamental consiste em aniquilar as forças do inimigo, compreendendo-se como tal não só as forças militares do imperialismo dos Estados Unidos, como as forças militares convencionais dos ‘gorilas’ brasileiros. […] A luta de guerrilhas não se desenvolve jamais de um só jato, isto é, desde quando se inicia até quando termina, com a vitória ou o fracasso. Pensar que isto pudesse ser assim significaria considerar a guerrilha como uma luta improvisada e arbitrária e não como uma luta de classes que se desenvolve segundo as leis da guerra. Ainda que seja um prolongamento da política, a guerra tem suas leis específicas. Quando estamos em guerra, devemos saber que sua lei básica é a preservação de nossas próprias forças e o aniquilamento das forças do inimigo. Nenhuma destas duas coisas pode se obter de uma só vez, e é obrigatoriamente necessário passar por um certo número de fases para atingir os objetivos previstos.” (Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil, outubro de 1967)

Continua Marighella, desenvolvendo as relações a características das fases de uma guerra, e as condições de passagem de uma fase a outra. Depois:

“Assim, na luta guerrilheira no Brasil distinguem-se três fases fundamentais.

A primeira é a do planejamento e preparação da guerrilha. A segunda é a do lançamento e sobrevivência da guerrilha. A terceira é a do crescimento da guerrilha e sua transformação em guerra de manobras.

O tempo de duração de todas ou de cada uma dessas fases não importa, como ensina a história, pois os povos que lutam pela libertação jamais se preocupam com o tempo de duração de sua luta.” (Idem)

Discorrendo sobre a primeira fase, coloca como requisitos básicos, “a existência de um pequeno núcleo de combatentes, surgido em condições histórico-sociais determinadas. Esse requisito constitui uma regra geral. […] Não se deve, entretanto, empreender a guerrilha sem um plano estratégico e tático global, com base na realidade objetiva. Tal plano é necessário para que a guerrilha não venha a ser uma iniciativa isolada, desligada dos grandes objetivos patrióticos perseguidos por nosso povo, e sem a imprescindível visão do processo de aniquilamento das forças do inimigo.” (Idem)

Termina dizendo que são necessários ainda a preparação e a adestramento da guerrilha.

Após a primeira fase viria a segunda, “a do lançamento e sobrevivência da guerrilha, e se destina a converter uma situação política em situação militar. Com esta segunda fase, as tarefas políticas convencionais propostas pelos direitistas, como sejam eleições, ‘frente ampla’, luta pacífica, etc., caem no descrédito público. Surgem métodos de luta revolucionários e de apoio à guerrilha, com a finalidade de aniquilar as forças do inimigo. Esta mudança é muito violenta e produz um impacto em todos os setores da luta.” (Idem)

Ao final de 1969, a área urbana especialmente o triângulo, estava conflagrada e preparávamo-nos para o início das ações no campo. O impacto de que falava Marighella era notório, pois a repressão inimiga havia atingido, desarticulado e praticamente anulado as mais variadas formas de organização e protestos pacíficas. A ação de pequenos grupos de homens amados transformara-se na forma principal de luta contra a ditadura.

A situação atual é diferente? A resposta só pode ser não. O regime intensifica barbaramente a repressão e qualquer veleidade de protesto pacífico a legal sofre as suas consequências, apesar das esperanças de “descompressão” que, em doses de conta-gotas e periodicamente, exprime.

O dado mais importante do momento presente é nossa incapacidade de responder, no mesmo nível, à atuação inimiga. Os golpes que recebemos non impediram de passar à outra fase da luta e nos obrigaram a diminuir o ritmo e intensidade das ações revolucionárias.

Mas, apesar destas mudanças ocorridas na situação, para nós continuam válidas estas premissas expressadas por Marighella.

Portanto, como perspectiva estratégica estamos na fase de planejamento e preparação da guerrilha, e a atuação da Organização deve ser condicionada por tal objetivo.

Nesta fase, nossa atividade deve ser intensificar a luta urbana, estabelecer os eixos guerrilheiros e preparar as áreas de atuação, assim como, o selecionamento e treinamento dos combatentes.

C

A guerrilha urbana está destinada a jogar um importantíssimo papel em nossa luta de libertação. O número de concentrações urbanas de consideração cresce dia a dia, devido a uma constante e crescente êxodo rural. Logo, os revolucionários devem ter o máximo carinho e dar a devida importância no desenvolvimento e intensificação da guerrilha urbana.

Marighella já definiu qual o seu papel enquanto complemento na guerrilha rural. Nosso objetivo é abalar o poder econômico, político e militar do inimigo, que se concentra nas cidades e particularmente no triângulo (Rio – São Paulo – Belo Horizonte) de sustentação da burguesia.

Desorganizar suas comunicações, aumentar gradativamente os distúrbios na área urbana, a fim de que as tropas do regime não possam deixar sem preocupações as cidades. Intensificar a agitação e a intranquilidade social, com o fim de enfraquecer a ditadura. Ter a própria luta como escola de preparação de combatentes.

Os três anos que acumulamos de guerra nos podem transmitir ricas e importantes experiências. O balanço em nossos erros e acertos e na atuação inimiga nos devem servir de ponto de partida para o desenvolvimento do trabalho.

É fundamental aplicar o planejamento como método de trabalho, a todos os níveis e em todas as questões. Planejamento, execução e controle.

Tal é o caminho que necessita seguir nossa ação. O planejar significa definir os objetivos de um setor, dar um balanço nos recursos que ele dispõe e a partir daí estipular metas a alcançar. O controle deve ser aplicado periodicamente, com o fim de dar um balanço, de maneira que possamos ver o que alcançamos, onde erramos e realizar as necessárias mudanças.

Em uma guerra revolucionária a situação evolui permanentemente e, portanto, não podemos ser rígidos e inflexíveis nos objetivos e prazos traçados. Deve-se ter muito cuidado na avaliação das forças de que dispomos, para não traçarmos metas impossíveis de cumprir, ou que mesmo ao alcançá-las signifique prejuízo e abandono de outros setores ou graves infrações de segurança.

Porém, tais coisas não devem impedir ou desestimular o emprego, no limite máximo de tensão de nossas forças, assim como a aplicação do planejamento-execução-controle procurando harmonizar e conjugar no possível, a atuação de toda a Organização.

O planejamento das perspectivas a desenvolver precisa ser realizado em todos os escalões e todos os companheiros, em seu nível, devem dele participar.

Nenhuma guerra, portanto também a luta urbana, pode ser eficazmente travada sem a montagem de uma infraestrutura sólida, profunda a extensa, que abranja a todos os setores possíveis. Ela deve estar intimamente ligada aos grupos de ação, e ser como eles fragmentária. Não pode constituir um corpo único, para dificultar a atuação inimiga e impedir golpes fatais.

Em sua constituição jogam papel importante, o dinheiro, a motorização, armas e munições. Devemos trabalhar incansavelmente para solucionar o problema médico, cuja falta ou inconsistência já nos trouxe sérios prejuízos.   

A informação pode ter um destacado papel em nossa atividade. Ela foi muito subestimada anteriormente. Devemos organizar o seu recolhimento, seleção e análise. Tal sistemática permitirá uma atuação mais segura e diversificada de nossa parte.

A documentação é algo vital na guerrilha urbana, principalmente para os guerrilheiros procurados pela repressão. Ela precisa ser constantemente desenvolvida e aprimorada, visando penetrar nos mais variados setores e garantir nossa segurança.

A imprensa é algo fundamental para o complemento da agitação e propaganda guerrilheiras, explicando à população quais são nossos objetivos e como deve organizar-se. É importante também, para a publicação do material destinado ao aprimoramento da consciência e da capacidade política-ideológica do combatente.

Locais onde possamos fabricar e consertar armas, preparar explosivos e granadas, são decisivos para o aumento de nossa potência de fogo. Os aparelhes que servem de depósito, de esconderijo para o procurado e de cárcere para o sequestrado são a espinha dorsal da infraestrutura guerrilheira. A montagem dessa estrutura deve ser prioritária no setor urbano, para ela.

Em um tipo de luta como a que travamos, a superioridade inimiga no tocante a armamento é constante. Porém, ainda assim, nossa potência de fogo é muito pouca, pequena até para lográramos na maioria dos casos uma superioridade tática, e que nos restringe muito em nossa capacidade combativa. Aumentar o efetivo e potência de nossas armas é tarefa urgente, e necessitamos recorrer à sua compra, fabricação ou expropriação. O explosivo deve ser integrado a ela, na forma de bombas, granadas e coquetéis molotov.

A formação do guerrilheiro urbano necessita ser constantemente aprimorada. E ela possuí estes aspectos principais: 

Um, a formação política. Para melhor combater o inimigo, é o que primeiro distingue um e outro lado, o guerrilheiro precisa aprofundar incessantemente seu conhecimento sobre o porquê da luta, seus objetivos e métodos. Fortalecer a decisão de luta é condição básica para o choque com a repressão, além de propiciar ao combatente melhores condições para desenvolver sua atividade de organização, forjando uma mentalidade crítica para constantemente corrigir seu trabalho. É preciso estimular o estudo sob dois ângulos básicos: um que seja amplo, abrangendo estudo de nossa história, a estruturação da sociedade brasileira, as experiências do movimento revolucionário mundial, etc. A base de tal estudo deve ser o marxismo-leninismo, cujo conhecimento e leitura é prioritário, assim como os de Marighella. O segundo, que o estudo seja planejado e orientado, ou seus resultados serão muito dispersos. O grupo revolucionário deve constituir a base para a leitura e o debate organizados.

O segundo aspecto é a formação técnica. Sua importância é exaustivamente desenvolvida no Minimanual. Não bastam as armas, mas é preciso que o combatente domine com segurança o funcionamento das mais diversas armas e aperfeiçoe constantemente a pontaria. O tiro é a razão de ser do guerrilheiro urbano. É verdade que não dispomos de grande variedade de armas. No entanto, a preocupação de, nas frentes guerrilheiras, todos conhecerem as armas que possuem, saber desarmar, armar e dispará-las, não é muito grande. Tal subestimação precisa ser sanada. É preciso também haver uma maior divulgação e conhecimento de explosivo, cuja correta utilização torna-se uma arma terrível em nossas mãos.

A análise dos métodos de organização e formas de luta empregados nestes três anos é muito importante. Devemos procurar tornar uma constante o balanço de cada ação, realizada pelo grupo que a praticou, de cada volume maior de ações, pelo conjunto de combatentes. Insere-se aí também a divulgação, debate e estabelecimentos de normas quanto às mais variadas atividades; como cobrir pontos, segurança de aparelhos, sinais, sentes, etc.

Todo este conjunto de medidas coordena/separa uma penetração política maior da nossa parte. A situação de movimentos de massas estagnados, sem orientação clara e de pouca combatividade não nos deve surpreender. A mudança de qualidade na luta, causa, como escreveu Marighella, “um impacto em todos os setores em luta”. Ao não estar preparado para a mudança violenta que ocorreu, o movimento de massas sofreu um natural retrocesso.

É preciso compreender este fenômeno para entender sua situação hoje e poder levar uma política acertada para seu meio, nas perspectivas de organização e luta que o devem orientar. Caso contrário ele continuará em estagnação ou sofrerá sérias e contínuas derrotas.

“A frente de massas exige a organização de grupos revolucionários nos locais de trabalho e de estudo, na cidade e na área rural. Ao lado disto, é preciso dar à frente de massas uma potência de fogo razoável. As ações do movimento de massas devem ser ações armadas, e uma infraestrutura idêntica à da frente guerrilheira deve ser montada na frente urbana de massas.” (Questões de Organização, dezembro de 1968) 

Com as modificações de organização que a experiência nos impõe, o conceito de que as ações de massas têm que ser de caráter armado, baseado em uma infraestrutura guerrilheira, é hoje mais verdadeiro que nunca. As formas específicas de sua realização dever sair das necessidades e realidades concretas. Seu conceito geral de aplicação é a propaganda armada.

Apesar disto não negamos que outros tipos de trabalho, como a atuação em órgãos legais, mesmo os criados pela ditadura podem ser utilizados, em dependência da situação do setor e de nossos objetivos locais. O que deve estar claro é seu limitado alcance e que não é esta nossa principal atividade, através da qual pretendemos mobilizar e organizar o povo contra o regime.

“A rebelião do guerrilheiro urbano e sua persistência em interceder nas questões populares constituem a melhor maneira de assegurar o apoio do povo à causa que defendemos.” (Minimanual, junho de 1969).

Um aspecto da questão é que devemos concentrar esforços de organização na classe operária, objetivamente subestimada até agora, devido, por um lado a seu baixo nível de atuação e penetração das ideias revolucionárias, e do outro, à combatividade demonstrada por setores da classe média.

No entanto hoje, com o nível alcançado pela repressão e os golpes por nós recebidos, na classe média tende a ganhar corpo o aspecto negativo e a vacilação, apenar dos setores que temos condições de ganhar decisivamente para a revolução.

Nos ressentimos, portanto, de uma maior base nas camadas populares, cujo papel decisivo é claro em nossa guerra de libertação.

Tal conjunto de atividades, a guerrilha urbana, deve ser intensificada, paulatinamente e em correspondência ao nível de estrutura que criarmos, e levada a outros pontos do país, nos quais seja nula ou muito pequena nossa influência.

Ela deve expressar o protesto popular nas áreas urbanas, organizando-o e aguçando a luta de classes, assim como, servir de suporte (municiadora de recursos) ao trabalho no campo de preparação da luta rural.

D

Toda nossa estratégia é condicionada por uma necessidade: a formação do Exército Revolucionário de Libertação Nacional. E, por isto, o desencadeamento da luta armada no campo constitui o nosso principal objetivo. Os reveses sofridos, dificultaram e impediram sua concretização, mas permanece como tarefa prioritária.

A guerrilha rural é decisiva no plano político em função da integração da massa camponesa em nosso processo de luta. Nenhuma revolução verdadeira poderá se realizar e manter-se no Brasil se não contar com a participação dos camponeses.

No plano militar para a criação de um exército, no âmbito de uma guerra revolucionária integrada a uma luta de classes, onde devemos contar com nossas próprias forças a partir do combate com o inimigo através de um pequeno grupo de homens, só é possível no campo. Já, fora do cerco estratégico do inimigo, contamos com a imensidão de nosso território para, passo a passo, sairmos de uma situação de inferioridade, onde contamos com poucos efetivos e poucas armas, para uma situação de superioridade, com a junção da luta rural (através do Exército Revolucionário) e da guerrilha urbana (através de um número imenso de pequenos grupos de ação).

Por isto nossa guerra revolucionária será uma guerra de movimento, não defenderemos territórios, nem bases fixas. Em contante marcha, impediremos que o inimigo possa concentrar efetivos em número suficiente para nosso cerco de aniquilamento.      

Ao formarmos o Exército Revolucionário, a guerra assumirá o caráter de guerra de manobras. Será a última fase, para a derrubada da ditadura e a instauração do Governo Revolucionário Popular.

Porém, para trilhar todo este longo caminho, é necessário dar o primeiro passo. E este é o lançamento da guerrilha rural. Em seu início, o que nos interessa é realizar a propaganda armada, intensificar ao máximo os distúrbios sociais no campo. Para isso, necessitamos conhecer e ter em conta os problemas da massa camponesa, praticar as ações respeitando seus interesses fundamentais.

“As plantações de fazendeiros devem ser queimadas, o gado dos grandes pecuaristas e dos frigoríficos e das invernadas devem ser expropriado e abatido para matar a fome dos camponeses, a parte restante deve ser dispersada pelas áreas guerrilheiras a fim de que o guerrilheiro rural encontre carne para comer. Os grileiros e os norte-americanos proprietários de terra devem ser tocaiados e mortos e bem assim os capangas dos fazendeiros. O mesmo castigo deverá ser imposto aos administradores, feitores e capatazes que perseguem os camponeses e destroem suas benfeitorias. Os latifundiários que exigem prestação de serviços gratuitos dos seus trabalhadores devem ser sequestrados e seus bens expropriados; os armazéns, os barracões onde são comprados gêneros a troco de vale devem ser saqueados; os cárceres privados em que os fazendeiros mantêm segregados os trabalhadores rurais devem ser destruídos, o mesmo deve acontecer com as cadeias públicas onde os camponeses estão presos; os arquivos das coletorias devem ser incendiados e bem assim as letras, as promissórias rurais e os demais papéis destinados à cobrança de dívidas e impostos dos camponeses; deve ser arrancado o capim onde os latifundiários ameaçam substituir por pastagem a lavoura dos camponeses. É preciso reprimir os despejos na bala, invadir as terras devolutas e as terras loteadas pelos fazendeiros e grandes companhias agrícolas.” (Alocução sobre a Guerrilha Rural, outubro de 1969).

Em meio a esta rebelião social, a guerrilha rural surge e cresce, originando uma mudança em nossa luta de libertação. O inimigo tem consciência clara de seu papel estratégico na guerra revolucionária brasileira. E assim, sua maior preocupação em evitar seu desencadeamento enquanto apregoa e demonstra sua inviabilidade.

Ao mesmo tempo, procura aceleradamente preparar segundo suas conveniências o cenário da luta. Constrói estradas, dispersa informantes por vastas áreas, adestra na luta antiguerrilheira suas tropas, melhora a comunicação, moderniza o armamento, reconhece terreno, realiza a ACISO (Ação Cívica Social, atividade assistencial temporária praticada pelo Exército em áreas rurais), aperfeiçoa o controle sobre as áreas de tradicional tensão social, etc.

A importância da guerrilha rural é o eixo de nossa estratégia. Entretanto, apesar de todos concordarem com o seu papel, teoricamente, quando voltam-se para a atividade prática muitos companheiros tendem objetivamente a subestimá-la. Absorvem-se completamente em sua atuação na guerrilha urbana e nunca consideram suficientes os esforços e recursos para esta última desviados.

A luta no campo deve ser iniciada como consequência de um nível razoável alcançado nas cidades pela guerrilha. Nisto estamos todos claros. Mas, tal coisa não pode ser encarada, e concretamente muitas vezes o é, reconheçam ou não alguns companheiros, como organizar e intensificar as ações na área urbana para então nos dedicarmos ao campo.

Ao encararmos o processo revolucionário, devemos nos esforçar para apanhá-lo como um todo, e não analisá-lo e encerrá-lo simplesmente em nosso setor de atuação.

A guerra precisa ser levada a todos os pontos do país, urbanos e rurais. Obedecendo a critérios e progressivamente, é verdade, mas firme e decididamente. Tal coisa nos obriga a esforços gigantescos, a travar combates em várias frentes simultaneamente.

Portanto, o papel decisivo da guerrilha rural não pode ser uma constatação unicamente. A guerrilha rural não é algo que surge espontaneamente, ela exige planejamento e preparação. É preciso organizar os eixos guerrilheiros, reconhecer e selecionar áreas, adestrar os combatentes. Preparar as comunicações, os serviços médicos e o abastecimento. Tais tarefas são dispendiosas, difíceis, absorventes e demoradas. Para ela devem convergir nossos maiores recursos e os melhores quadros. Sem pressa, mas decididos, é nosso dever tornar tal atividade o eixo e a real razão de ser da Organização.

E

A concretização de nossos objetivos, a libertação do Brasil da dominação imperialista e da exploração da oligarquia nativa, tem ainda como fator básico a unidade dos revolucionários.

Na história da esquerda brasileira, sua unidade tem sido difícil e sempre efêmera. Quando houve, baseava-se em situações concretas que, ao deixarem de existir, levaram como consequências ao fim da atuação conjunta.

As origens de tais fatos se devem à maneira como desenvolveu-se o progresso brasileiro: às origens de classe dos partidos e organizações criadas, às suas perspectivas; ao sectarismo, desconfiança que dominaram e envenenaram as relações entre os revolucionários.

O desencadeamento das ações armadas constitui um acontecimento que permite uma virada em tal situação. O entendimento deixa de situar-se em um plano meramente formal e teórico conduzido por cúpulas burocráticas. Ele torna-se dinâmico, vivo, a prática das ações permite e exige uma participação comum.

Entretanto, em virtude das desconfianças passadas, a unidade avança vagarosamente e ainda é muito débil. Permitimos que questões secundárias e oportunismos de caráter organizativo influam, dificultando a solidariedade fraternal que deveria existir, no mais alto grau, entre nós.

O inimigo tem claro o problema da unidade, ao mesmo tempo em que forja e zela pela sua, alegra-se com nossas diferenças e procura aprofundá-las, dentro da máxima “dividir para vencer”.

Nós não queremos a unidade das forças revolucionárias por capricho. Ela, levando a uma atuação político-militar conjunta, reduz as condições e possibilidades do inimigo de nos golpear e aumenta, por outro lado, nossa capacidade de atingi-lo com maior Intensidade, volume e eficácia.

Permite também atenuar o desconhecimento e confusão da massa quanto a nossos objetivos, que é resultado do enorme número de organizações e partidos com diferentes práticas e orientações.

Portanto, a formação da Frente Revolucionária Brasileira é uma de nossas metas. Mas não a vemos como algo estático, fruto unicamente de discussões e acordos, e sim como resultado de um processo em que jogam papel determinante a atuação político-militar em comum dos revolucionários.

Para tal atuação estamos abertos, e ela queremos concretizar em qualquer nível, desde a simples troca de informações, passando por auxílios fraternais quando de dificuldades, até a realização de ações conjuntas em níveis e perspectivas cada vez mais amplas. As condições para isto são que estas relações se desenvolvam em um ambiente de honestidade, confiança e fraternidade, e que tenham como objetivo comum a derrubada da ditadura, a expulsão do imperialismo e o estabelecimento de um governo revolucionário popular.

Marighella não tinha como objetivo, com nossa organização, ser a vanguarda da revolução brasileira. O que pretendia era que desencadeássemos e estendêssemos no limite de nossa capacidade as ações armadas. Tinha consciência, e expôs claramente que a vanguarda de nossa revolução se estava forjando com os combatentes de todas as organizações e que tal vanguarda se cristalizaria na guerrilha rural, no Exército Revolucionária de Libertação Nacional.

F

A guerra revolucionária no Brasil não se desenvolve isoladamente. Ela está integrada em um panorama internacional que é condicionado por relações de classe cada vez mais agudas.

Como parte integrante de uma luta entre dois sistemas econômicos-sociais antagônicos, capitalismo e socialismo, nossa revolução influi e é influenciada pelos acontecimentos que se desenvolvem em todo o mundo. Dentro de suas peculiaridades, travam uma luta comum com os povos da Ásia, África e América Latina contra a dominação imperialista e a exploração oligárquica, pela libertação nacional. Sua luta não pode ser dissociada igualmente da realizada pelos trabalhadores europeus diretamente contra a exploração capitalista pela paz e a justiça.

Na América Latina, insere-se em um ambiente em efervescência, onde os métodos de luta contra a dominação do imperialismo norte-americano assumem formas das mais diversas e interessantes. Assim, não nos devem surpreender as repercussões que, em todo o mundo, alcançam nossas ações, assim como as manifestações de apoio e ajuda que recebemos. Elas nos encorajam e sensibilizam.

Nossa política é contatar e manter relações com os que, em qualquer parte, mostram-se interessados e inclinados a divulgar e auxiliar nossa luta. Nestas relações devemos respeitar a independência de ação e não nos intrometermos na política que, em seu país, desenvolve este grupo, organização, partido ou governo. Tal reciprocidade em pensamento e ação é o necessário para o estabelecimento, manutenção e desenvolvimento de fraternais relações de solidariedade.

Devido às características próprias de nossa luta, um grande número de elementos encontre-se no exterior. Muitos para lá se dirigiram antes mesmo do início e intensificação das ações armadas, outros o fizeram quando do endurecimento da repressão, alguns saíram para cumprir tarefas da Organização, há muitos companheiros libertados em sequestros, etc.

Tal diversidade ocasionou muita confusão. Alguns elementos oportunistas (que combinam, como regra geral, também a covardia), procuraram ter uma atividade não de divulgação e auxílio à luta guerrilheira no Brasil, mas de promoção pessoal. Outros, mesmo sinceros e decididos, devido ao distanciamento no tempo е no espaço tiveram iniciativas contraproducentes. Tendeu-se muitas vezes a considerar a frente externa mais importante que a interna.

Para a Organização não é fácil a orientação permanente a seus militantes no exterior. Assim, estes devem ter muita discrição em suas atividades. Ninguém, no exterior, pode ser recrutado para a Organização. Pode trabalhar para e em conjunto com ela, mas a opção é concretizada aqui, na guerra. Não temos embaixadores, elementos com poderes absolutos para desenvolver e decidirem qualquer coisa. Cada combatente no exterior deve estar cumprindo uma tarefa, por tempo determinado, e integrado em um trabalho conjunto.

E este trabalho tem que estar subordinado às necessidades e a orientação da Organização no Brasil. Quando desenvolvido em frente com outra organização, deve corresponder à atuação em conjunto no Brasil. Não trabalhamos com quem não atue no país ou que aqui não tenhamos contato.

OU FICAR A PÁTRIA LIVRE OU MORRER PELO BRASIL!

Junho de 1971 – ALN   

Iara e Iuri Xavier Pereira, ambos irmãos de Alex de Paula Xavier e filhos dos comunistas João Batista e Zilda Xavier Pereira, antigos militantes do PCB que que acompanharam com Marighella e fundaram a ALN no estado da Guanabara.

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A guerra de guerrilhas – Vladimir Lenin https://revistabacuri.editorialadande.com/guerrilha-lenin/ Sun, 29 Dec 2024 01:00:56 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=542 Publicado originalmente no jornal bolchevique clandestino Proletary nº 5, em 13 de Outubro (pelo calendário juliano) ou 30 de Setembro (pelo calendário gregoriano) de 1906. As datas entre parênteses no texto correspondem a diferença de 13 dias entre esses dois calendários. O jornal Proletary teve 50 edições chegando até 10 mil exemplares por número, foi editado por V. I. Lenin entre 1906 e 1909 como órgão de fato da Fração Bolchevique do POSDR, mas formalmente como órgão de diferentes comitês do POSDR de Moscou, São Petersburgo, Perm, Kursk e Kazan, primeiro foi publicado a partir de Vyborg (edições nº 1-20), depois no exílio em Genebra (edições nº 21-40) e em Paris (edições nº 41-50). Foi encerrado por decisão do Comitê Central do POSDR em janeiro de 1910 através de uma resolução aprovado pelos mencheviques e os chamados conciliadores.

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A questão das ações de guerrilhas interessa muito o nosso Partido e a massa operária. Abordamos repetidamente esta questão, mas superficialmente, e temos agora a intenção de chegar, como prometemos, a uma exposição mais completa das nossas ideias sobre este assunto.

I

Comecemos pelo princípio. Quais exigências essenciais deve apresentar um marxista no exame da questão das formas de luta? Em primeiro lugar, o marxismo difere de todas as formas primitivas do socialismo porque não subjuga o movimento a qualquer forma de combate único e determinado. Admite os métodos de luta mais variados; mas não os “inventa”; limita-se a generalizar, organizar, tornar conscientes os métodos de luta das classes revolucionárias, que surjam espontaneamente mesmo no decurso do movimento. Absolutamente hostil a todas as formas abstratas, a todas as receitas doutrinárias, o marxismo quer que se considere atentamente a luta de massa que se desenvolve e que, à medida do desenvolvimento do movimento, dos progressos da consciência das massas, do agravamento das crises econômicas e políticas, faça nascer sem cessar novos sistemas, cada vez mais variados, de defesa e de ataque. É a razão porque o marxismo não repudia de uma maneira absoluta nenhuma forma de luta. Em nenhum caso, entende limitar-se às formas de luta possíveis e existentes num dado momento; reconhece que uma modificação da conjuntura social conduzirá inevitavelmente ao aparecimento de novas formas de luta, ainda desconhecidas dos militantes do dito período. O marxismo, neste sentido, aprende, se assim podemos dizer, na escola prática das massas; está longe de pretender ensinar as massas propondo-lhes formas de luta inventadas por “fabricantes de sistemas” no seu gabinete de trabalho. Nós sabemos – dizia, por exemplo, Kautsky examinando as formas de revolução social – que a futura crise nos trará novas formas de luta que não podemos prever atualmente.

Em segundo lugar, o marxismo exige absolutamente que a questão das formas de luta seja encarada sob o seu aspecto histórico. Colocar esta questão sem ter em conta as circunstâncias concretas e históricas, é ignorar o ABC do materialismo dialético. Em momentos distintos da evolução econômica, em função das diversas condições na situação política, nas culturas nacionais, nas condições de existência, etc., diferentes formas de luta se erguem em primeiro plano, tornam-se as principais, enquanto que por repercussão os métodos secundários, acessórios, se modificam igualmente. Pensar responder sim ou não, quando a questão se põe em apreciar um meio determinado de luta, sem examinar em detalhe as circunstâncias concretas do movimento no ponto preciso onde se chegou – significa abandonar completamente a posição marxista.

Estes são, teoricamente, os dois princípios essenciais que nos devem guiar. A história do marxismo na Europa ocidental dá-nos inúmeros exemplos em apoio do que se acaba de dizer. A social-democracia europeia considera atualmente o parlamentarismo e o movimento sindical como as principais formas de luta; outrora, reconhecia a insurreição e está ainda perfeitamente disposta a reconhecê-la futuramente em conjunturas modificadas – contrariamente ao que pensam os burgueses liberais, do gênero dos cadetes russos e dos sans étiquette[1]. A social-democracia rejeitou, entre 1870 e 1880, a greve geral considerada como panaceia social, enquanto meio de derrubar de improviso a burguesia por uma outra via sem ser a política; mas a social-democracia admite perfeitamente a greve política de massa (sobretudo depois da experiência feita na Rússia em 1905) como um dos meios de luta, indispensável em certas condições. A social-democracia admitia os combates de barricadas nas ruas em 1840-1850; rejeitava este meio, por motivo de determinadas circunstâncias, no fim do século XIX; declarou-se pronta a rever esta última posição e a admitir a utilidade dos combates de barricadas, depois da experiência de Moscou que, segundo os termos de K. Kautsky, criou uma nova tática de barricadas.

II

Depois de expostos os princípios gerais do marxismo sobre este assunto, passemos à revolução russa. Recordemos o desenvolvimento histórico das formas de luta que ela sugeriu. No princípio, greves econômicas de operários (1896-1900); em seguida, manifestações políticas de operários e de estudantes (1901-1902), revoltas de camponeses em 1902, depois as primeiras greves políticas de massa, combinadas diversamente com manifestações (Rostov 1902, greves do Verão de 1903 e de 22 (9) de Janeiro de 1905); greve política estendida a toda a Rússia, com combates de barricada em certos locais (Outubro de 1905); luta de barricadas generalizada e insurreição armada (Dezembro de 1905); luta parlamentar pacífica (Abril-Junho 1906); amotinações parciais no exército (Junho 1905-Junho 1906); revoltas parciais de camponeses (Outono 1905-Outono de 1906).

Esta é a situação por volta do Outono de 1906, do ponto de vista geral das formas de luta. A autocracia “responde” com as perseguições organizadas pelas Centúrias Negras desde a de Kichinev, na Primavera de 1903, até à de Siedlce, no Outono de 1906[2]. Durante todo este período, a organização pelos cem-negristas das perseguições e massacres de judeus, de estudantes, de revolucionários, de operários conscientes progride sem cessar, aperfeiçoa-se, unificando na violência uma populaça comprada e os bandos armados de reacionários, indo até ao emprego de artilharia nas aldeias e nas cidades e confundindo-se com expedições punitivas, com comboios de repressão, e assim por diante.

Este é o âmago da questão. Neste âmago desenha-se – certamente como qualquer coisa de particular, de secundário, de acessório – o fenômeno em estudo e em apreciação ao qual é consagrado o presente artigo. Qual é o fenômeno? Quais são as formas? As causas? Quando surgiu e até que ponto foi divulgado? Qual é a sua dimensão na marcha geral da revolução? Quais são as suas ligações com a luta da classe operária, organizada e dirigida pela social-democracia? Tais são as questões que devemos abordar agora depois de ter traçado o âmago da questão.

O fenômeno que nos interessa é a luta armada. Ela é conduzida por indivíduos e por pequenos grupos de indivíduos. Em parte, eles pertencem a organizações revolucionárias; em parte (e, em certas localidades da Rússia, na maior parte) não pertencem a nenhuma organização revolucionária. A luta armada prossegue dois objetivos diferentes, que é indispensável distinguir rigorosamente; antes do mais, esta luta tem por fim matar indivíduos: chefes e subalternos dos serviços militar e policial; em seguida, confiscar fundos pertencentes tanto ao governo como a particulares. Os fundos confiscados são em parte empregues nas necessidades do Partido, em parte na compra de armas e nos preparativos da insurreição, em parte na manutenção de militantes que conduzem a luta em questão. As grandes expropriações (a que foi feita no Cáucaso e que rendeu mais de 200.000 rublos, a de Moscou que rendeu 875.000 rublos)[3] serviram acima de tudo as necessidades dos partidos revolucionários; as pequenas expropriações servem sobretudo, e por vezes somente, para a manutenção dos “expropriadores”. É um fato que esta forma de luta não se desenvolveu muito e expandiu a não ser em 1906, quer dizer, depois da insurreição de Dezembro. O agravamento da crise política, até à luta armada, e, em particular, o agravamento da miséria, da fome e do desemprego, tanto nas cidades como no campo, estão entre as principais causas que conduziram ao emprego desta forma de luta das classes. Estes processos de luta social adotados de preferência, e quase mesmo exclusivamente pelos elementos mais miseráveis da população, pés descalços, lumpemproletários e grupos anarquistas. Sob a forma de configuração “responsiva” de luta da parte da autocracia, convém citar o estado de sítio, a mobilização de novas tropas, as perseguições dos cem-negristas (Siedlce), os tribunais militares.

III

Geralmente, estes meios de luta são qualificados de: anarquismo, blanquismo, um retorno ao antigo terrorismo; são atos de indivíduos que nada têm em comum com as massas, que desmoralizam os operários, desviam destes as simpatias das largas camadas da população, desorganizam o movimento e prejudicam a revolução. É fácil encontrar exemplos que confirmam esta apreciação nos jornais que anunciam todos os dias feitos semelhantes.

Mas são estes exemplos comprovativos? Para o verificar, consideremos uma região onde a forma de luta considerada é a mais usada: a Letônia. Eis os queixumes que formula o jornal Novoié Vrémia de 21 (8) e de 25 (12) de setembro acerca da atividade da social-democracia da Letônia. O partido Social-Democrata Operário da Letônia (ligado ao P.O.S.D.R.) publica o seu jornal regularmente com uma tiragem de 30.000 exemplares[4]. Na parte oficial, publica listas de espiões que todo o homem honesto tem o dever de executar. Os que colaboram com a polícia são declarados “adversários da revolução” e sujeitos a execução; por outro lado, respondem também com todos os seus bens. O dinheiro destinado ao Partido Social-Democrata não deve ser depositado a não ser com a apresentação de um recibo sustentando o carimbo da organização. No último relatório do Partido, sobre 48.000 rublos de receitas para o ano, figuram 5.600 rublos entregues pela seção de Libau, para compra de armas; esta soma foi realizada por expropriação. O Novoié Vrémia vitupera furiosamente, concebe-se, com esta “legislação revolucionária”, este “governo temível”.

Ninguém ousaria qualificar a atividade dos social-democratas letões de anarquismo, blanquismo, terrorismo. E porquê? Porque aqui vê-se claramente a relação entre esta nova forma de luta e a insurreição que ocorreu em dezembro como a que se prepara de novo. Para toda a Rússia esta combinação não é tão evidente, mas existe. Não se poderia pôr em causa a extensão da luta “de guerrilhas” precisamente desde dezembro e a sua ligação com o agravamento da crise não somente econômica, mas também política. O antigo terrorismo russo era ocupação de intelectuais conspiradores; hoje em dia a luta de guerrilhas é conduzida, em geral, por militantes operários ou simplesmente por desempregados. O blanquismo e o anarquismo apresentam-se rapidamente na ideia daqueles que atuam voluntariamente segundo fórmulas feitas; mas perante uma situação insurrecional tão evidente como o é na Letônia, a impropriedade destes epitáfios salta à vista.

Pelo exemplo dos letões vê-se muito bem a que ponto esta análise, tão frequente entre nós, da guerra de guerrilhas, separada da situação insurrecional, está privada de justeza, de valor científico, de sentido histórico. Ora é preciso contar com esta situação, cuidar das particularidades de um período intermédio entre as grandes revoltas; é preciso compreender quais as novas formas de luta que nascem inevitavelmente em tais períodos, e não se esquivar, recusando em bloco estes métodos com a ajuda de um vocabulário feito, igualmente usado pelos cadetes como entre as pessoas do Novoié Vrémia: anarquismo, pilhagem, crimes de elementos desqualificados!

Dizem-nos que os atos de guerrilha desorganizam o nosso trabalho. Apliquemos este raciocínio à situação que se seguiu a Dezembro de 1905, na época das perseguições organizadas pelas Centúrias Negras e do estado de sítio. O que é que desorganiza mais o movimento numa época semelhante: a falta de resistência ou uma luta organizada de guerrilhas; comparai a Rússia central com as províncias fronteiriças do oeste, a Polônia e a Letônia. Sem dúvida alguma, a guerra de guerrilhas está muito mais difundida e mais desenvolvida no oeste. Está igualmente fora de dúvida que o movimento revolucionário em geral, e o movimento social-democrata em particular, estão mais desorganizados na Rússia central que nas províncias do oeste. Longe de nós, certamente, a ideia de concluir que o movimento social-democrata na Polônia e na Letônia está menos desorganizado graças à guerra de guerrilhas. De maneira nenhuma. É preciso concluir somente que a guerra de guerrilhas não tem nada a ver com a desorganização do movimento operário social-democrata na Rússia de 1906.

Invoca-se bastante frequentemente o caráter particular das condições nacionais. Mas esta alegação atraiçoa sobretudo a fraqueza da argumentação corrente. Se se trata com efeito das particularidades nacionais, então o anarquismo, o blanquismo, o terrorismo, vícios comuns a todas as partes do império, e mesmo mais especialmente às províncias de nacionalidade russa, não têm nada com isso; trata-se então de outra coisa. Examinem esta “outra coisa” de uma maneira concreta, senhores! Vereis então que a opressão nacional, ou melhor, os antagonismos de nacionalidades nada explicam, porque eles existiram sempre nas províncias do oeste, enquanto a luta de guerrilhas só apareceu no presente período histórico. Há muitas regiões onde a opressão e os antagonismos nacionais existem, sem que se verifique a luta de guerrilhas; e esta desenvolve-se por vezes em locais onde não se poderia falar de opressão nacional. A análise concreta da questão mostrará que se trata aqui não da opressão nacional, mas das condições da insurreição. A guerrilha é uma forma inevitável de luta numa época em que o movimento das massas termina efetivamente na insurreição e se criam intervalos mais ou menos consideráveis entre as “grandes batalhas” no decurso da guerra civil.

O que desorganiza o movimento não são as ações de guerrilhas, mas a fraqueza de um partido incapaz de encarregar-se destas operações. É a razão por que a maldição que geralmente se lança, entre nós, russos, às ações de guerrilha coincide com operações deste gênero, mas clandestinas, acidentais, desorganizadas, e que efetivamente desorganizam o partido. Se somos incapazes de compreender as circunstâncias históricas que criam esta forma de luta, somos igualmente incapazes de lhe neutralizar as ações nocivas. Mas a luta não para. Ela é provocada por poderosos fatores econômicos e políticos. Não depende de nós suprimir estes fatores nem suprimir esta luta. Logo que nos lastimamos da guerra de guerrilhas, lastimamo-nos na realidade da fraqueza do nosso partido na obra insurrecional.

O que acabamos de dizer da desorganização refere-se também à desmoralização. O que desmoraliza não é a guerra de guerrilhas, mas o caráter desorganizado, desordenado e “sem-partido” dos atos de guerrilha. E nesta desmoralização absolutamente incontestável não escaparemos de modo algum censurando e amaldiçoando as ações de guerrilha; porque estas censuras e estas maldições são absolutamente impotentes para fazer parar o fenômeno provocado por causas profundas, de ordem econômica e política. Podem nos objetar: se somos incapazes de fazer parar um fenômeno anormal e desmoralizante, não é uma razão para que o partido adote meios de luta anormais e desmoralizantes. Mas semelhante objeção seria a de um liberal burguês e não de um marxista, porque um marxista não pode considerar de uma maneira geral como anormal e desmoralizante a guerra civil, ou ante, a guerra de guerrilhas que é uma das suas formas. O marxista atem-se no terreno da luta de classes e não no da paz social. Em certos períodos de crises agudas, econômicas e políticas, a luta de classes terminou no seu desenvolvimento numa verdadeira guerra civil, quer dizer, numa luta armada entre duas partes da população. Em tais períodos, o marxista tem a obrigação de se colocar no ponto de vista da guerra civil. Nenhuma condenação moral desta é admissível do ponto de vista do marxismo.

Em tempo de guerra civil o ideal do partido do proletariado é um partido combatente. É absolutamente incontestável. Admitimos perfeitamente que, do ponto de vista da guerra civil, se possa e se venha a demonstrar que um outro método de guerra, em um ou em outro momento, não é razoável. Admitimos perfeitamente que se critique diversos métodos de guerra civil do ponto de vista da sua oportunidade militar e estamos absolutamente de acordo para reconhecer que em questões idênticas a voz decisiva pertence aos militantes da social-democracia em cada região distinta. Mas em nome dos princípios do marxismo exigimos categoricamente que não se furte à análise das condições da guerra civil por meio de formas e frases repetidas e feitas sobre o anarquismo, o blanquismo, o terrorismo, e que não se venha agitar diante de nós certos processos absurdos aplicados na guerra de guerrilhas por uma ou outra organização do PPS[5], em um ou em outro momento, quando se trata de decidir-se, de uma maneira geral, os social-democratas participarão nesta guerra de guerrilhas.

Quando se alega que a guerra de guerrilhas desorganiza o movimento, é preciso examinar criticamente as circunstâncias. Toda a nova forma de luta, implicando novos perigos e novas vítimas, “desorganiza” forçosamente as organizações que não estão preparadas. Os nossos antigos círculos de propagandistas desorganizaram-se logo que se passou à agitação. Os nossos comitês desorganizaram-se em consequência de termos participado nas manifestações. Todas as ações militares em qualquer guerra introduzem uma certa desorganização nas fileiras dos combatentes. Não se pode concluir disso que não se deve combater. É preciso concluir disso que é preciso aprender a combater. Apenas isso e nada mais.

Quando vejo social-democratas que, orgulhosamente, com presunção, declaram: não somos anarquistas, nem ladrões, não nos entregamos à pilhagem, estamos acima de tudo isso, rejeitamos a guerra de guerrilhas, pergunto a mim próprio se estas pessoas sabem o que dizem. Em toda a extensão do país, há escaramuças e combates entre um governo de cem-negrista e a população. Este fenômeno é absolutamente inevitável em dado grau de desenvolvimento da revolução. Espontaneamente, sem organização – e precisamente por causa disto, frequentemente com imperícia, de mau modo – a população reagiu com confrontos armados, com ataques à mão armada. Compreendo que, em consequência da fraqueza e da falta de preparação da nossa organização, podíamos renunciar, nessa região, nesse momento, a assegurar a essa luta espontânea a direção do partido. Compreendo que esta questão deve ser resolvida no local pelos militantes e que não é fácil transformar organizações fracas e não preparadas. Mas logo que vejo que um teórico ou um publicista da social-democracia, em vez de se afligir pensando nesta falta de preparação, fala com uma satisfação presunçosa de anarquismo, de blanquismo, de terrorismo, e repete a este respeito frases decoradas na sua juventude com a vaidade de um presunçoso, sofro ao ver rebaixada deste modo a doutrina mais revolucionária do mundo.

Dizem-nos que a guerra de guerrilhas aproxima o proletariado consciente das escumalhas, dos patifes e bêbados. É verdade. Mas, disto, a única conclusão a tirar é que o partido do proletariado nunca deve considerar a guerra de guerrilhas como o único ou mesmo o principal meio de luta; que este meio deve estar subordinado a outros, que deve ser empregado numa medida justa de acordo com os meios principais, e que deve ser engrandecido pela influência educadora e organizativa do socialismo. Se esta última condição não é cumprida, todos os meios de luta, sem exceção, na sociedade burguesa, aproximam o proletariado das camadas não proletárias acima ou abaixo dele, e entregues ao desenvolvimento espontâneo das coisas, gastam-se, desnaturam-se, prostituem-se. As greves, abandonadas ao desenvolvimento dos acontecimentos, degeneram em Alliances – em acordos entre os operários e os patrões contra os consumidores. O parlamento torna-se um local de tolerância, onde um bando de políticos burgueses trafica, por junto e em detalhe, “liberdades públicas”, “liberalismo”, “democracia”, republicanismo, anticlericalismo, socialismo e outras mercadorias correntes. O jornal degenera em intermediário, acessível a todos, em instrumento de depravação das massas; lisonjeia grosseiramente os baixos instintos da multidão, etc. A social-democracia não possui meios de luta universais capazes de proteger o proletariado, erguendo uma Muralha da China entre ela e as camadas que estão um pouco superiores ou um pouco inferiores. A social-democracia emprega, segundo as épocas, meios diferentes, subordinando sempre a sua aplicação a ideias e métodos de organização rigorosamente determinados.[6]

IV

As formas de luta na revolução russa são de uma extraordinária diversidade quando comparadas com as que foram postas em prática pelas revoluções burguesas na Europa. Kautsky tinha-o parcialmente predito, em 1902, quando afirmava que a futura revolução (acrescentava: talvez com exceção da Rússia) seria mais uma luta entre duas facções do povo do que uma luta do povo contra o governo. Na Rússia, vemos, sem dúvida alguma, um maior desenvolvimento desta segunda forma de luta que nas revoluções burguesas ocidentais. Os inimigos da nossa revolução entre o próprio povo são pouco numerosos, mas organizam-se cada vez mais à medida que a luta se agrava, e obtêm apoio das camadas reacionárias da burguesia. Por conseguinte, é perfeitamente natural e inevitável que numa semelhante época, na época das greves políticas de todo o povo, a insurreição não se possa revestir da antiga forma de atos isolados, limitados a um curto espaço de tempo e de território. É perfeitamente natural e inevitável que a insurreição se eleve às formas mais complexas de uma guerra civil, englobando todo o país, quer dizer uma luta armada entre duas partes do povo. Não se pode representar uma guerra deste gênero de outra maneira a não ser como uma série de batalhas pouco numerosas, separadas por intervalos de tempo relativamente consideráveis, no decurso dos quais haja numerosas escaramuças. A partir do momento em que é assim – e é assim realmente – a social-democracia deve absolutamente marcar como tarefa a criação de organizações que, na medida do possível, sejam capazes de dirigir as massas nestas grandes batalhas, assim como, se possível, nessas escaramuças. A social-democracia, numa época em que a luta de classes foi agravada até à guerra civil, deve ter como tarefa, não somente participar nesta guerra civil, mas deve desempenhar um papel diretivo. A social-democracia deve educar e preparar as suas organizações para que elas intervenham efetivamente enquanto parte beligerante, sem deixar escapar uma só ocasião de causar danos ao inimigo.

É um problema difícil, inútil dizê-lo. Não se pode resolvê-lo de repente. Do mesmo modo que, no decurso da guerra civil, todo o povo refaz a sua educação e se instrui, do mesmo modo as nossas organizações devem ser educadas, recompostas, sobre as bases dos dados da experiência, para estarem à altura da tarefa.

Não temos a mais pequena pretensão de impor aos militantes uma forma de luta da nossa autoria, nem mesmo resolver, no nosso gabinete de trabalho, a questão do papel de um ou outra forma da guerra de guerrilhas na marcha geral da guerra civil na Rússia. Longe de nós o pensamento de ver, numa apreciação concreta de uma ou outra ação da guerrilha, um problema de orientação para a social-democracia. Mas nós vemos que a nossa tarefa é de contribuir, na medida do possível, para uma justa apreciação teórica das novas formas de luta impostas pela vida; como também de combater implacavelmente as fórmulas preconcebidas e as conjecturas que impedem os operários conscientes de apreciarem, como convém, este novo e difícil problema e chegarem a uma justa solução.


[1] Grupo da intelectualidade burguesa russa formado por colaboradores e partidários da revista Sans étiquette (Sem Título) que apareceu em 1906 em São Petersburgo. Declarando um apartidarismo formal, apoiavam os liberais e os mencheviques e pronunciavam-se contra a independência política do proletariado.

[2] Pogrom de Kichiniov (ou Quixineve) foi um dos mais sangrentos pogroms contra os judeus na Rússia czarista, ocorrido em abril de 1903 e resultando em algumas centenas de pessoas mortas e feridas, além de destruídas e pilhadas mais de mil casas. Opogrom contra os judeus de Siedlce foi organizado em fins de agosto de 1906, com a cidade sendo submetida a fogo de artilharia e centenas de pessoas mortas e feridas.

[3] A expropriação do Cáucaso foi realizada na cidade de Ducheti da província de Tiflís. Na noite de 13 (26) de abril de 1906 por seis homens armados, disfarçados de soldados do regimento aquartelado em Ducheti, penetraram, fazendo-se passar pela guarda, na tesouraria local e apoderaram-se de 315 000 rublos. A expropriação de Moscou foi realizada pelos socialistas-revolucionários em 7 (20) de março de 1906 no banco da Sociedade Comercial de Crédito Mútuo. Um grupo de homens armados, contando com cerca de 20 elementos, desarmou a segurança do banco e expropriou 875.000 rublos.

[4] Referência ao jornal Zihna (Luta), órgão central da social-democracia na Letônia; fundado em março de 1904. Foi publicado clandestinamente em Riga com intervalos até agosto de 1909, e depois no exílio. Após o estabelecimento do poder soviético na Letônia, em junho de 1940, o jornal tornou-se órgão do Comitê Central do Partido Comunista da Letônia e do Soviete Supremo da República Socialista Soviética da Letônia.

[5] O Polska Partia Socjialisticzna (Partido Socialista Polaco, PPS) foi  um partido nacionalista reformista criado em 1892, que atuou defendendo uma Polônia independente, realizando uma propaganda separatista e nacionalista entre os operários polacos e esforçando-se para afastá-los da luta conjunta com os operários russos contra a autocracia e o capitalismo.

[6] Acusam-se frequentemente os social-democratas bolcheviques de adotarem uma atitude imprudente e parcial em relação às ações de guerrilha. Também não é supérfluo lembrar que no projeto de resolução sobre as ações de guerrilha, esta parte dos bolcheviques que as defende sujeitou o seu reconhecimento às condições seguintes: as expropriações dos bens do erário público não eram recomendadas e não eram toleradas senão sob a condição do controle do Partido e da atribuição desses recursos às necessidades da insurreição. As ações de guerrilha sob a forma de ações terroristas estavam recomendadas contra os fomentadores de violências do governo e contra os cem-negristas ativos, mas na condição: 1. Contar com o estado de espírito das amplas massas; 2. Tomar em consideração as condições do movimento operário da localidade referida; 3. Ter cuidado para que as forças do proletariado não sejam desperdiçadas em vão. A única coisa que distingue praticamente este projeto da resolução adotada no Congresso de unificação, é que não admite as expropriações dos bens do erário público. [Nota de Lenin]

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A Arma da Teoria – Discurso de Amílcar Cabral na Tricontinental https://revistabacuri.editorialadande.com/amilcar-cabral/ Sat, 28 Dec 2024 05:28:23 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=528 O discurso “Fundamentos e objetivos da libertação nacional em relação com a estrutura social” de Amílcar Cabral, como representante do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) e demais organizações nacionalistas das colônias portuguesas, foi proferido durante a primeira Conferência Tricontinental dos Povos da Ásia, África e América Latina, em janeiro de 1966, Havana, Cuba. Ficando conhecido como “A Arma da Teoria”, foi revisado a partir da edição de Carlos Comitini e dos documentos oficiais publicados pelo PAIGC.

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FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DA LIBERTAÇÃO NACIONAL EM RELAÇÃO COM A ESTRUTURA SOCIAL

Os povos e as organizações nacionalistas de Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe mandaram as suas delegações a esta Conferência por duas razões principais: primeiro, porque queremos estar presentes e tomar parte ativa neste acontecimento transcendente da História da Humanidade; segundo, porque era nosso dever político e moral trazer ao povo cubano, neste momento duplamente histórico – 7º aniversário da revolução e primeira Conferência Tricontinental – uma prova concreta da nossa solidariedade fraternal e combativa.

Permitam-me portanto, que, em nome dos nossos povos em luta e em nome dos militantes de cada uma das nossas organizações nacionais, enderece as mais calorosas felicitações e saudações fraternais ao povo desta Ilha Tropical, pelo 7º aniversário do triunfo da sua revolução, pela realização desta Conferência na sua bela e hospitaleira capital e pelos sucessos que tem sabido alcançar no caminho da construção de uma vida nova que tem como objetivo essencial a plena realização das aspirações à liberdade, à paz, ao progresso e à justiça social de todos os cubanos. Saúdo em particular o Comitê Central do Partido Comunista Cubano, o Governo Revolucionário e o seu líder exemplar – o Comandante Fidel Castro – a quem exprimo, os nossos votos de sucessos contínuos e de longa vida ao serviço da Pátria Cubana, do progresso e da felicidade do seu povo, ao serviço da Humanidade.

Se algum ou alguns de nós, ao chegar a Cuba, trazia no seu espírito alguma dúvida sobre o enraizamento, a força, o amadurecimento e a vitalidade da Revolução Cubana, essa dúvida foi destruída pelo que já tivemos ocasião de ver. Uma certeza inabalável acalenta os nossos corações e encoraja-nos nesta luta difícil mas gloriosa contra o inimigo comum: nenhuma força do mundo será capaz de destruir a Revolução Cubana, que, nos campos e nas cidades, está criando não só uma vida nova, mas também – o que é mais importante – um Homem novo, plenamente consciente dos seus direitos e deveres nacionais, continentais e internacionais. Em todos os campos da sua atividade, o povo cubano realizou progressos importantes nos últimos sete anos, em particular no ano findo — o Ano da Agricultura. Esses progressos estão patentes tanto na realidade material e cotidiana como no homem e na mulher cubanos, na confiança tranquila do seu olhar face a um mundo em efervescência, onde as contradições e as ameaças, mas também as esperanças e as certezas, atingiram um nível nunca antes igualado.

Do que já vimos e estamos a aprender em Cuba, queremos referir aqui uma lição singular na qual nos parece estar um dos segredos, se não o segredo, daquilo a que muitos não hesitariam em chamar “o milagre cubano”: a comunhão, a identificação, o sincronismo, a confiança recíproca e a fidelidade entre as massas populares e os seus dirigentes. Quem assistiu às grandiosas manifestações destes últimos dias e, em particular, ao discurso do Comandante Fidel Castro no ato comemorativo do 7º aniversário, terá medido, como nós, em toda a sua grandeza, o caráter específico – talvez decisivo – deste fator primordial do sucesso da Revolução Cubana. Mobilizando, organizando e educando politicamente o povo, mantendo-o em permanente conhecimento dos problemas nacionais e internacionais que interessam a sua vida, e levando-o a participar na solução desses problemas, a vanguarda da Revolução Cubana, que cedo compreendeu o caráter indispensável da existência dinâmica de um Partido forte e unido, soube não só interpretar justamente as condições objetivas e as exigências específicas do meio, mas também forjar a mais poderosa das armas para a defesa, a segurança e a garantia da continuidade da Revolução: a consciência revolucionária das massas populares que, como se sabe, não é nem nunca foi espontânea em parte alguma do mundo. Cremos que esta é mais uma lição para todos, mas particularmente para os movimentos de libertação nacional e, em especial, para aqueles que pretendem que a sua revolução nacional seja uma Revolução.

Alguns não deixarão de lembrar que, embora constituindo uma minoria insignificante, muitos cubanos não comungaram nas alegrias e esperanças das festas do sétimo aniversário, porque são contra a Revolução. Nós lembramos que é possível que vários outros não estejam presentes nas comemorações do próximo aniversário, mas queremos afirmar que interpretamos a política da “porta aberta para a saída dos inimigos da Revolução” como uma lição de coragem, de determinação, de humanismo e de confiança no povo, como mais uma vitória política e moral sobre o inimigo. E garantimos àqueles que, de um ponto de vista amigo, se preocupam com os perigos que essa saída possa representar, que nós, os povos dos países africanos ainda parcialmente ou totalmente dominados pelo colonialismo português, estamos prontos para mandar para Cuba tantos homens e mulheres quantos sejam necessários para compensar a saída daqueles que, por razões de classe ou de inadaptação, têm interesses e atitudes incompatíveis com os interesses do povo cubano. Repetindo o caminho outrora doloroso e trágico dos nossos antepassados – nomeadamente da Guiné e Angola – que foram transplantados para Cuba como escravos, viremos hoje como homens livres, como trabalhadores conscientes e como patriotas cubanos, para exercer uma atividade produtiva nesta sociedade nova, justa e multirracial; para ajudar a defender com o nosso sangue as conquistas do povo de Cuba. Mas viremos também para reforçar tanto os laços históricos, de sangue e de cultura que unem os nossos povos ao povo cubano, como essa descontração mágica, essa alegria visceral e esse ritmo contagioso que fazem da construção do socialismo em Cuba um fenômeno novo à face do mundo, um acontecimento único e, para muitos, insólito.

Não vamos utilizar esta tribuna para dizer mal do imperialismo. Diz um ditado africano muito corrente nas nossas terras – onde o fogo é ainda um instrumento importante e um amigo traiçoeiro – o que prova o estado de subdesenvolvimento em que nos vai deixar o colonialismo – diz esse ditado que “quando a tua palhoça queima, de nada serve tocar o tantã”. A dimensão tricontinental, isso quer dizer que não é gritando nem atirando palavras feias (faladas ou escritas) contra o imperialismo, que vamos conseguir liquidá-lo. Para nós, o pior ou o melhor mal que se pode dizer do imperialismo, qualquer que seja a sua forma, é pegar em armas e lutar. É o que estamos a fazer e faremos até a liquidação total da dominação estrangeira nas nossas pátrias africanas.

Viemos aqui decididos a informar esta Conferência, o mais detalhadamente possível, sobre a situação concreta da luta de libertação nacional em cada um dos nossos países e, em particular, naqueles em que há luta armada. Fá-lo-emos perante a Comissão própria e também por meio de documentos, de filmes, de fotografias, de contatos bilaterais e dos órgãos de informação cubanos, no decurso da Conferência.

Pedimos permissão para utilizar esta oportunidade de uma maneira que consideramos mais útil. Na verdade, viemos a esta Conferência convencidos de que ela é uma oportunidade rara para uma ampla troca de experiências entre os combatentes de uma mesma causa, para o estudo e a resolução de problemas centrais da nossa luta comum, visando não só o reforço da nossa unidade e solidariedade, mas também a melhoria do pensamento e da ação de cada um e de todos, na prática cotidiana da luta. Por isso, se pretendemos evitar tudo quanto possa representar perda de tempo, estamos no entanto firmemente decididos a não permitir que quaisquer fatores estranhos, ou não diretamente ligados aos problemas que nos devem preocupar aqui, venham perturbar as possibilidades de êxito desta Conferência. Temos razões bastantes para afirmar que esta é igualmente a posição de todos os outros movimentos de libertação nacional presentes a esta Conferência.

A nossa agenda de trabalhos inclui temas cuja importância e acuidade estão fora de discussão, e nos quais sobressai uma preocupação dominante: a luta. Observamos, contudo, que um tipo de luta, quanto a nós fundamental, não está mencionado expressamente nessa agenda, embora tenhamos a certeza de que está presente no espírito dos que a elaboraram. Queremos referir-nos à luta contra as nossas fraquezas. Admitimos que os outros casos sejam diferentes do nosso, mas a nossa experiência nos ensina que no quadro geral da luta que travamos cotidianamente, sejam quais forem as dificuldades que nos cria o inimigo, essa é a luta mais difícil tanto no presente como para o futuro dos nossos povos. Ela é a expressão das contradições internas da realidade econômica, social e cultural (portanto, histórica) de cada um dos nossos países. Estamos convencidos de que qualquer revolução, nacional ou social, que não tenha como base fundamental o conhecimento adequado dessa realidade, corre fortes riscos de insucesso, se não estiver votada ao fracasso.

AUSÊNCIA DE IDEOLOGIA

Quando o povo africano afirma, na sua linguagem chã, que “por mais quente que seja a água da fonte, ela não pode cozer o teu arroz”, enuncia, com chocante simplicidade, um princípio fundamental não só da física como da ciência política. Sabemos com efeito que a orientação (o desenvolvimento) de um fenômeno em movimento, seja qual for o seu condicionamento exterior, depende principalmente das suas características internas. Sabemos também que, no plano político, por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto e nos nossos esforços e sacrifícios próprios. Vale a pena lembrar nesta ambiência tricontinental, onde as experiências abundam e os exemplos não escasseiam, que, por maior que seja a similitude dos casos em presença e a identificação dos nossos inimigos, infelizmente ou felizmente, a libertação nacional e a revolução social não são mercadorias de exportação; elas são – e cada dia mais – o produto duma elaboração local, nacional, mais ou menos influenciadas por fatores exteriores favoráveis e desfavoráveis, mas essencialmente determinadas e condicionadas pela realidade histórica de cada povo e consolidadas pela vitória ou a solução correta das contradições internas entre as diversas categorias que caracterizam esta realidade. O sucesso da revolução cubana, que se desenvolve apenas a 90 milhas da maior força imperialista e antissocialista de todos os tempos, parece-nos ser, no seu conteúdo e na forma como tem evoluído, uma ilustração prática e convincente da validade do princípio acima referido.

Devemos, no entanto, reconhecer que nós próprios e os outros movimentos de libertação em geral (referimo-nos sobretudo à experiência africana) não temos sabido dar a devida atenção a este problema importante da nossa luta comum.

A deficiência ideológica, para não dizer a falta total de ideologia, por parte dos movimentos de libertação nacional – que tem a sua justificação de base na ignorância da realidade histórica que esses movimentos pretendem transformar – constituem uma das maiores senão a maior fraqueza da nossa luta contra o imperialismo. Cremos, no entanto, que já foram acumuladas experiências bastantes e suficientemente variadas para permitir a definição de uma linha geral de pensamento e de ação visando a eliminar essa deficiência. Por isso, um amplo debate sobre essa matéria poderia ser de utilidade e permitir a esta Conferência dar uma contribuição valiosa para a melhoria da ação presente e futura dos movimentos de libertação nacional. Seria uma forma concreta de ajudar esses movimentos e, em nossa opinião, não menos importante do que os apoios políticos e as ajudas em dinheiro, armas e outro material.

É na intenção de contribuir, embora modestamente, para esse debate, que apresentamos aqui a nossa opinião sobre os fundamentos e objetivos da libertação nacional relacionados com a estrutura social. Essa opinião é ditada pela nossa própria experiência de luta e pela apreciação crítica das experiências alheias. Àqueles que verão nela um caráter teórico, temos de lembrar que toda a prática fecunda uma teoria. E que, se é verdade que uma revolução pode falhar, mesmo que seja nutrida por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém praticou vitoriosamente uma Revolução sem teoria revolucionária.

A LUTA DE CLASSES

Aqueles que afirmam – e quanto a nós, com razão – que a força motora da história é a luta de classes, decerto estariam de acordo em rever esta afirmação, para precisá-la e dar-lhe até maior aplicabilidade, se conhecessem em maior profundidade as características essenciais de alguns povos colonizados (dominados pelo imperialismo). Com efeito, na evolução geral da humanidade e de cada um dos povos nos agrupamentos humanos que a constituem, as classes não surgem nem como um fenômeno generalizado e simultâneo na totalidade desses agrupamentos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo. A definição das classes no seio dum agrupamento ou de agrupamentos humanos resulta fundamentalmente do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e das características da distribuição das riquezas produzidas por esse agrupamento ou usurpadas a outros agrupamentos. Quer dizer: o fenômeno socioeconômico classe surge e desenvolve-se em função de pelo menos duas variáveis essenciais e interdependentes: o nível das forças produtivas e o regime de propriedade dos meios de produção. Esse desenvolvimento opera-se lenta, desigual e gradualmente, por acréscimos quantitativos, em geral imperceptíveis, das variáveis essenciais, os quais conduzem, a partir de certo momento de acumulação, a transformações qualitativas que se traduzem no aparecimento da classe, das classes e do conflito entre classes.

Fatores exteriores a um dado conjunto socioeconômico em movimento podem influenciar mais ou menos significativamente o processo de desenvolvimento das classes, acelerando-o, atrasando-o ou até provocando nele regressões. Logo que cesse, por qualquer razão, a influência desses fatores, o processo retoma a sua independência, e o seu ritmo passa a ser determinado não só pelas características internas próprias do conjunto, mas também pelas resultantes do efeito sobre ele causado pela ação temporária dos fatores externos. No plano estritamente interno, pode variar o ritmo do processo, mas ele permanece contínuo e progressivo, sendo os avanços bruscos só possíveis em função de aumentos ou alterações bruscas – mutações – no nível das forças produtivas ou no regime da propriedade. A estas transformações bruscas operadas no interior do processo de desenvolvimento das classes como resultado de mutações no nível das forças produtivas ou no regime de propriedade, convencionou-se chamar, em linguagem econômica e política, revoluções.

Vê-se, por outro lado, que a possibilidade de esse processo ser influenciado significativamente por fatores externos, em particular pela interação de conjuntos humanos, foi grandemente aumentada pelo progresso dos meios de transporte e de comunicações que veio criar o mundo e a humanidade, eliminando o isolamento entre os agrupamentos humanos de uma mesma região, entre regiões de um mesmo continente e entre os continentes. Progresso que caracteriza uma longa fase da história que começou com a invenção do primeiro meio de transporte, se evidenciou já nas viagens púnicas e na colonização grega e se acentuou com as descobertas marítimas, a invenção das máquinas a vapor e a descoberta da eletricidade. E que promete, nos nossos dias, com base na domesticação progressiva da energia atômica, se não semear o homem pelas estrelas, pelo menos humanizar o universo.

O que foi dito permite-nos pôr a seguinte pergunta: será que a história só começa a partir do momento em que se desencadeia o fenômeno classe e, consequentemente, a luta de classes? Responder pela afirmativa seria situar fora da história todo o período da vida dos agrupamentos humanos, que vai da descoberta da caça e, posteriormente, da agricultura nômade e sedentária à criação do gado e à apropriação privada da terra. Mas seria também – o que nos recusamos a aceitar – considerar que vários agrupamentos humanos da África, Ásia e América Latina viviam sem história ou fora da história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo. Seria considerar que populações dos nossos países, como os Balantas da Guiné, os Cuanhamas de Angola e os Macondes de Moçambique, vivem ainda hoje, se nos abstrairmos das muitas ligeiras influências do colonialismo a que foram submetidas, fora da história ou não têm história.

Esta recusa, aliás baseada no conhecimento concreto da realidade socioeconômica dos nossos países e na análise do processo de desenvolvimento do fenômeno classe tal como foi feita acima, leva-nos a admitir que, se a luta de classes é a força motora da história, ela o é durante um certo período da história. Isto quer dizer que antes da luta de classes (e, necessariamente, depois da luta de classes, porque neste mundo não há antes sem depois) algum fator (ou alguns fatores) foi e será o motor da história. Não nos repugna admitir que esse fator da história de cada agrupamento humano é o modo de produção (o nível das forças produtivas e o regime de propriedade) que caracteriza esse agrupamento. Mas, como se viu, a definição da classe e a luta de classes são, elas mesmas, um efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugado com o regime da propriedade dos meios de produção. Parece-nos, portanto, lícito concluir que o nível das forças produtivas, determinante essencial do conteúdo e da forma da luta de classes, é a verdadeira e a permanente força motora da história.

Se aceitarmos essa conclusão, então ficam eliminadas as dúvidas que perturbam o nosso espírito. Porque, se por um lado vemos garantida a existência da história antes da luta de classes e evitamos a alguns agrupamentos humanos dos nossos países (e quiçá dos nossos continentes) a triste condição de povos sem história, vemos assegurada, por outro lado, a continuidade da história mesmo depois do desaparecimento da luta de classes ou das classes. E como não fomos nós que postulamos, aliás em bases científicas, o desaparecimento das classes como uma fatalidade da história, sentimo-nos bem nesta conclusão que, em certa medida, restabelece uma coerência e dá simultaneamente aos povos que, como o de Cuba, estão a construir o socialismo, a agradável certeza de que não ficarão sem história quando finalizarem o processo da liquidação do fenômeno classe e da luta de classes no seio do seu conjunto socioeconômico. A eternidade não é coisa deste mundo, mas o homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas.

SOBRE O MODO DE PRODUÇÃO

O que fica dito e a realidade atual do nosso tempo permite-nos admitir que a história de um agrupamento humano ou da humanidade se processa em pelo menos três fases: a primeira, em que, correspondendo a um baixo nível das forças produtivas – do domínio do homem sobre a natureza – o modo de produção tem caráter elementar, não existe ainda a apropriação privada dos meios de produção, não há classes, nem, portanto, luta de classes; a segunda, em que a elevação do nível das forças produtivas conduz à apropriação privada dos meios de produção, complica progressivamente o modo de produção, provoca conflitos de interesses no seio do conjunto socioeconômico em movimento, possibilita a erupção do fenômeno classe e, portanto, a luta de classes, que é a expressão social da contradição, no domínio econômico, entre o modo de produção e a apropriação privada dos meios de produção; a terceira em que, a partir de um dado nível das forças produtivas, se torna possível e se realiza a liquidação da apropriação privada dos meios de produção, a eliminação do fenômeno classe e, portanto, da luta de classes, e se desencadeiam novas e ignoradas forças no processo histórico do conjunto socioeconômico.

A primeira fase corresponderia, em linguagem político-econômica, à sociedade agropecuária comunitária, em que a estrutura social é horizontal, sem Estado; a segunda, às sociedades agrárias (feudal ou assimilada e agroindustrial burguesa), em que a estrutura social se desenvolve na vertical, com Estado; a terceira, às sociedades socialistas e comunistas em que a economia é predominantemente, senão exclusivamente, industrial (porque a própria agricultura passa a ser uma indústria) em que o Estado tende progressivamente para o desaparecimento ou desaparece, e em que a estrutura social volta a desenvolver-se na horizontal, a um nível superior de forças produtivas, de relações sociais e de apreciação dos valores humanos.

Ao nível da humanidade ou de parcelas da humanidade (agrupamentos humanos de uma mesma região ou de um ou mais continentes), essas três fases (ou duas delas) podem ser concomitantes, como provam tanto a realidade atual como o passado. Isso resulta do desenvolvimento desigual das sociedades humanas, quer por razões internas quer pela influência aceleradora ou retardadora de algum ou alguns fatores externos sobre a sua evolução. Por outro lado, no processo histórico de um dado conjunto socioeconômico, cada uma das fases referidas contém, a partir de um certo nível de transformação, os germens da fase seguinte.

Devemos notar também que, na fase atual da vida da humanidade e para um dado conjunto socioeconômico, não é indispensável a sucessão no tempo das três fases caracterizadas. Qualquer que seja o nível atual das suas forças produtivas e da estrutura social que a caracteriza, uma sociedade pode avançar rapidamente, através de etapas definidas e adequadas às realidades concretas locais (históricas e humanas), para uma fase superior de existência. Tal avanço depende das possibilidades concretas de desenvolver as suas forças produtivas e é condicionado principalmente pela natureza do poder político que dirige essa sociedade, quer dizer, pelo tipo de Estado ou, se quisermos, pela natureza da classe ou classes dominantes no seio dessa sociedade.

Uma análise mais pormenorizada mostrar-nos-ia que a possibilidade de um tal salto no processo histórico resulta fundamentalmente, no plano econômico, da força dos meios de que o homem pode dispor na atualidade para dominar a natureza e, no plano político, deste acontecimento novo que transformou radicalmente a face do mundo e a marcha da história – a criação dos Estados socialistas.

Vemos, portanto, que os nossos povos, sejam quais forem os seus estágios de desenvolvimento econômico, têm a sua própria história. Ao serem submetidos à dominação imperialista, o processo histórico de cada um dos nossos povos (ou o dos agrupamentos humanos que constituem cada um deles) foi sujeito à ação violenta de um fator exterior. Essa ação – o impacto do impedimento sobre as nossas sociedades – não podia deixar de influenciar o processo de desenvolvimento das forças produtivas dos nossos países e as estruturas sociais dos nossos povos, assim como o conteúdo e a forma das nossas lutas de libertação nacional.

Mas vemos também que, no contexto histórico em que se desenvolvem essas lutas, existe para os nossos povos a possibilidade concreta de passarem da situação de exploração e de subdesenvolvimento em que se encontram, para uma nova fase do seu processo histórico, a qual pode conduzi-los a uma forma superior de existência econômica, social e cultural.

O IMPERIALISMO

O relatório político elaborado pelo Comitê Internacional Preparatório desta Conferência, ao qual reafirmamos o nosso inteiro apoio, situou, de maneira clara e numa análise sucinta, o imperialismo no seu contexto econômico e nas suas coordenadas históricas. Não vamos aqui repetir o que já foi dito perante esta Assembleia. Diremos apenas que o imperialismo pode ser definido como a expressão mundial da procura gananciosa e da obtenção de cada vez maiores mais-valias pelo capital monopolista e financeiro, acumulado em duas regiões do mundo: primeiro na Europa e, mais tarde, na América do Norte. E, se queremos situar o fato imperialista na trajetória geral da evolução deste fator transcendente que modificou a face do mundo – o capital e os processos da sua acumulação – poderíamos dizer que o imperialismo é a pirataria transplantada dos mares para a terra firme, reorganizada, consolidada e adaptada ao objetivo da espoliação dos recursos materiais e humanos dos nossos povos. Mas se formos capazes de analisar com serenidade o fenômeno imperialista, não escandalizaremos ninguém ao termos de reconhecer que o imperialismo – que tudo mostra ser na realidade a fase última da evolução do capitalismo – foi uma necessidade da história, uma consequência do desenvolvimento das forças produtivas e das transformações do modo de produção, no âmbito geral da humanidade, considerada como um todo em movimento. Uma necessidade, como o são no presente a libertação nacional dos povos, a destruição do capitalismo e o advento do socialismo.

O que importa aos nossos povos é saber se o imperialismo, na sua condição de capital em ação, cumpriu ou não nos nossos países a missão histórica reservada a este: aceleração do processo do desenvolvimento das forças produtivas e transformação, no sentido da complexidade, das características do modo de produção; aprofundamento da diferenciação das classes com o desenvolvimento da burguesia e intensificação da luta de classes; aumento significativo do padrão geral médio do nível de vida econômica, social e cultural das populações. Interessa além disso averiguar quais as influências ou efeitos da ação imperialista sobre as estruturas sociais e o processo histórico dos nossos povos.

Não vamos fazer aqui o balanço condenatório nem a elegia do imperialismo, mas diremos apenas que, quer no plano econômico, quer nos planos social e cultural, o capital imperialista ficou longe de cumprir nos nossos países a missão histórica desempenhada pelo capital nos países de acumulação. Isso implica que, se, por um lado, o capital imperialista teve na grande maioria dos países dominados a simples função de multiplicador de mais-valias, constata-se, por outro lado, que a capacidade histórica do capital (como acelerador indestrutível do processo de desenvolvimento das forças produtivas) está estritamente dependente da sua liberdade, quer dizer, do grau de independência com que é utilizado. Devemos, no entanto, reconhecer que em alguns casos o capital imperialista ou capitalismo moribundo teve interesse, força e tempo bastante para, além de edificar cidades, aumentar o nível das forças produtivas, permitir a uma minoria da população nativa um padrão de vida melhor ou até privilegiado, contribuindo assim, em processo que alguns chamariam dialético, para o aprofundamento das contradições no seio das sociedades em causa. Em outros casos ainda, mais raros, houve a possibilidade de acumulação do capital, dando lugar ao desenvolvimento de uma burguesia local.

No que se refere aos efeitos da dominação imperialista sobre a estrutura social e o processo histórico dos nossos povos, convém averiguar em primeiro lugar quais são as formas gerais de dominação do imperialismo. Elas são pelo menos duas:

1º) Dominação direta – por meio de um poder político integrado por agentes estrangeiros ao povo dominado (forças armadas, polícia, agentes da administração e colonos) – à qual se convencionou chamar colonialismo clássico ou colonialismo.

2º) Dominação indireta – por meio de um poder político integrado na sua maioria ou na totalidade por agentes nativos – à qual se convencionou chamar neocolonialismo.

No primeiro caso, a estrutura social do povo dominado, seja qual for a etapa em que se encontra, pode sofrer os seguintes efeitos:

a) destruição completa, acompanhada em geral da liquidação imediata ou progressiva da população autóctone e consequente substituição desta por uma população exótica;

b) destruição parcial, em geral acompanhada da fixação mais ou menos volumosa de uma população exótica;

c) conservação aparente, condicionada pela confinação da sociedade autóctone a áreas ou reservas próprias e geralmente desprovidas de possibilidades de vida, acompanhada da implantação massiva de uma população exótica.

Os dois últimos casos, que são os que interessam considerar no quadro da problemática da libertação nacional, estão bem representados em África. Pode-se afirmar que, em qualquer deles, o efeito principal provocado pelo impacto do imperialismo no processo histórico do povo dominado é a paralisia, a estagnação (mesmo, em alguns casos, a regressão) desse processo. Essa paralisia não é, no entanto, completa. Num ou noutro setor do conjunto socioeconômico em causa podem operar-se transformações sensíveis, quer motivadas pela permanência da ação de alguns fatores internos (locais), quer resultantes da ação de novos fatores introduzidos pela dominação colonial, tais como o ciclo da moeda e o desenvolvimento das concentrações urbanas. Entre essas transformações, convém referir a perda progressiva, em certos casos, do prestígio das classes ou camadas dirigentes nativas, o êxodo, forçado ou voluntário, de uma parte da população camponesa para os centros urbanos, com consequente desenvolvimento de novas camadas sociais: trabalhadores assalariados, empregados do Estado, do comércio e profissões liberais, e uma camada instável dos sem trabalho. No campo surge, com intensidade muito variada e sempre ligada ao meio urbano, uma camada constituída por pequenos proprietários agrícolas. No caso do chamado neocolonialismo, quer a maioria da população colonizada seja autóctone, quer ela seja originariamente exótica, a ação imperialista orienta-se no sentido da criação de uma burguesia ou pseudo burguesia local, enfeudada à classe dirigente do país dominador.

As transformações na estrutura social não são tão profundas nas camadas inferiores, sobretudo no campo, onde ela conserva predominantemente as características da fase colonial, mas a criação de uma pseudo burguesia nativa, que em geral se desenvolve a partir de uma pequena burguesia burocrática e dos intermediários do ciclo das mercadorias (compradores), acentua a diferenciação das camadas sociais, abre, pelo reforço da atividade econômica de elementos nativos, novas perspectivas à dinâmica social, nomeadamente com o desenvolvimento progressivo de uma classe operária citadina e a instalação de propriedades agrícolas privadas, que dão lugar, pouco a pouco, ao aparecimento de um proletariado agrícola. Essas transformações mais ou menos sensíveis da estrutura social, determinadas aliás por um aumento significativo do nível das forças produtivas, tem influência direta no processo histórico do conjunto socioeconômico em causa. Enquanto no colonialismo clássico esse processo é paralisado, a dominação neocolonialista, permitindo o despertar da dinâmica social – dos conflitos de interesse entre as camadas sociais nativas ou da luta de classes – cria a ilusão de que o processo histórico volta à sua evolução normal. Essa ilusão é reforçada pela existência de um poder político (Estado nacional), integrado por elementos nativos. Apenas uma ilusão, porque, na realidade, o enfeudamento da classe “dirigente” nativa à classe dirigente do país dominador, limita ou inibe o pleno desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Mas, nas condições concretas da economia mundial do nosso tempo, esse enfeudamento é uma fatalidade, e, portanto, a pseudo burguesia nativa, seja qual for o seu grau de nacionalismo, não pode desempenhar efetivamente a função histórica que caberia a essa classe, não pode orientar livremente o desenvolvimento das forças produtivas, em suma, não pode ser uma burguesia nacional. Ora, como se viu, as forças produtivas são o motor da história, e a liberdade total do processo do seu desenvolvimento é a condição indispensável para o pleno funcionamento desse motor.

Vê-se, portanto, que tanto no colonialismo como no neocolonialismo, permanece a característica essencial de dominação imperialista – a negação do processo histórico do povo dominado, por meio da usurpação violenta da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Essa constatação, que identifica, na sua essência, as duas formas aparentes da dominação imperialista, parece-nos ser de importância primordial para o pensamento e a ação dos movimentos de libertação nacional, tanto no decorrer da luta como após a conquista da independência.

Com base no que fica dito, podemos afirmar que a libertação nacional é o fenômeno que consiste em um conjunto socioeconômico negar a negação do seu processo histórico. Em outros termos, a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica desse povo, é o seu regresso à história, pela destruição da dominação imperialista a que esteve sujeito.

Ora vimos que a característica principal e permanente da dominação imperialista, qualquer que seja a sua forma, é a usurpação pela violência da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas do conjunto socioeconômico dominado. Vimos também que é essa liberdade e só ela que garante a normalização do processo histórico de um povo. Podemos, portanto, concluir que há libertação nacional quando e só quando as forças produtivas nacionais são completamente libertadas de toda e qualquer espécie de dominação estrangeira.

Costuma-se dizer que a libertação nacional se fundamenta no direito, comum a todos os povos, de dispor livremente do seu destino e que o objetivo dessa libertação é a obtenção da independência nacional. Embora estejamos de acordo com essa maneira vaga e subjetiva de exprimir uma realidade complexa, preferimos ser objetivos. Para nós, o fundamento da libertação nacional, sejam quais forem as formulações adotadas no plano jurídico internacional, reside no direito inalienável de cada povo a ter a sua própria história: e o objetivo da libertação nacional é a reconquista desse direito usurpado pelo imperialismo, isto é, a libertação do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais.

Por isso, em nossa opinião, qualquer movimento de libertação nacional que não tem em consideração esse fundamento e esse objetivo, pode lutar contra o imperialismo, mas não estará seguramente lutando pela libertação nacional.

Isso implica que, tendo em conta as características essenciais da economia mundial do nosso tempo, assim como as experiências já vividas no domínio da luta anti-imperialista, o aspecto principal da luta de libertação nacional é a luta contra o que se convencionou chamar de neocolonialismo. Por outro lado, se considerarmos que a libertação nacional exige uma mutação profunda no processo de desenvolvimento das forças produtivas, vemos que o fenômeno da libertação nacional corresponde necessariamente a uma revolução. O que importa é ter consciência das condições objetivas e subjetivas em que se opera essa revolução, e quais as formas ou a forma de luta mais adequada para a sua efetivação.

Não vamos repetir aqui que essas condições são francamente favoráveis na presente etapa da história da humanidade. Queremos apenas lembrar que existem também fatores desfavoráveis, tanto no plano internacional como no plano interno de cada nação em luta pela sua libertação.

No plano internacional, parece-nos que pelo menos os seguintes fatores são desfavoráveis ao movimento de libertação nacional: a situação neocolonial de um grande número de Estados que conquistaram a independência política, vindo a juntar-se a outros que já viviam nessa situação; os progressos realizados pelo neocolonialismo, nomeadamente na Europa, onde o imperialismo, com recurso e investimentos preferenciais, incentiva o desenvolvimento de um proletariado privilegiado com consequente abaixamento do nível revolucionário das classes trabalhadoras; a situação neocolonial, evidente ou encoberta, de alguns Estados europeus que, como Portugal, têm ainda colônias; a chamada política de “ajuda” aos países subdesenvolvidos praticada pelo imperialismo com o objetivo de criar ou reforçar pseudo burguesias nativas, necessariamente enfeudadas à burguesia internacional, e de barrar assim o caminho à revolução; a claustrofobia e a timidez revolucionária que levam alguns Estados recentemente independentes, dispondo de condições econômicas e políticas interiores favoráveis à revolução, a aceitarem compromissos com o inimigo ou com os seus agentes; as contradições crescentes entre Estados anti-imperialistas e, finalmente, as ameaças, por parte do imperialismo, à paz mundial, face à perspectiva de uma guerra atômica. Esses fatores concorrem para reforçar a ação do imperialismo contra o movimento de libertação nacional.

Se a intervenção repetida e a agressividade crescente do imperialismo contra os povos podem ser interpretadas como um sinal de desespero diante da amplidão do movimento de libertação nacional, justificam-se, em certa medida, pelas debilidades criadas por esses fatores desfavoráveis na frente geral da luta anti-imperialista.

No plano interno, parece-nos que a fraqueza ou os fatores desfavoráveis mais significativos residem na estrutura econômico-social e nas tendências da sua evolução sob a pressão imperialista, ou melhor, na pequena ou nula atenção dada às características dessa estrutura e tendências pelos movimentos de libertação nacional na elaboração das suas estratégias de luta.

Este ponto de vista não pretende diminuir a importância de outros fatores internos desfavoráveis à libertação nacional, tais como o subdesenvolvimento econômico, com consequente atraso social e cultural das massas populares, o tribalismo e outras contradições menores. Convém, no entanto, notar que a existência de tribos só se manifesta como uma contradição significativa em função de atitudes oportunistas (geralmente provenientes de indivíduos ou grupos destribalizados) no seio do movimento de libertação nacional. As contradições entre classes, mesmo quando estas são embrionárias, são bem mais importantes do que as contradições entre tribos.

Embora a situação colonial e a neocolonial sejam idênticas na sua essência, e o aspecto principal da luta contra o imperialismo seja o neocolonialista, parece-nos indispensável distinguir, na prática, essas duas situações. Com efeito, a estrutura horizontal, ainda que mais ou menos diferenciada, da sociedade nativa, e a ausência de um poder político integrado por elementos nacionais, possibilitam, na situação colonial, a criação de uma ampla frente de unidade e de luta, aliás indispensável, para o sucesso do movimento de libertação nacional. Mas essa possibilidade não dispensa a análise rigorosa da estrutura social indígena, das tendências da sua evolução e a adoção, na prática, de medidas adequadas para garantir uma verdadeira libertação nacional. Entre essas medidas, embora admitamos que cada um sabe melhor o que deve fazer em sua casa, parece-nos ser indispensável a criação de uma vanguarda solidamente unida e consciente do verdadeiro significado e objetivo da luta de libertação nacional, que deve por ela ser dirigida. Esta necessidade tem tanto maior acuidade quanto é certo que, salvo em raras exceções, a situação colonial não permite nem solicita a existência significativa de classes de vanguarda (classe operária consciente de si e proletariado rural) que poderiam garantir a vigilância das massas populares sobre a evolução do movimento de libertação. Contrariamente, o caráter geralmente embrionário das classes trabalhadoras e a situação econômica, social e cultural da força física maior da luta de libertação nacional – os camponeses – não permitem a estas duas forças principais dessa luta distinguir de per si a verdadeira independência nacional da fictícia independência política. Só uma vanguarda revolucionária, geralmente uma minoria ativa, pode conscientizar ab initio essa diferença e levá-la, através da luta, à consciência das massas populares. Isso explica o caráter fundamentalmente político da luta de libertação nacional e dá, em certa medida, a importância da forma de luta no desfecho final do fenômeno da libertação nacional.

Já na situação neocolonial, a estruturação, mais ou menos acentuada, da sociedade nativa na vertical, e a existência de um poder político integrado por elementos nativos – Estado nacional – agravam as contradições no seio dessa sociedade e tornam difícil, se não impossível, a criação de uma frente unida tão ampla como no caso colonial. Por um lado, os efeitos materiais (principalmente a nacionalização dos quadros e o aumento da iniciativa econômica do nativo, em particular no plano comercial) e psíquicos (orgulho de se julgar dirigido pelos próprios compatriotas, exploração da solidariedade de ordem religiosa ou tribal entre alguns dirigentes e uma fração das massas populares) contribuem para desmoralizar uma parte considerável das forças nacionalistas. Mas, por outro lado, o caráter necessariamente repressivo do Estado neocolonial contra as forças de libertação nacional, o agravamento das contradições de classe, a permanência objetiva de agentes e de sinais de dominação estrangeira (colonos que conservam os seus privilégios, forças armadas, discriminação racial), a crescente pauperização do campesinato e a influência mais ou menos notória de fatores exteriores, contribuem para manter acesa a chama do nacionalismo, conscientizar progressivamente largas camadas populacionais e reunir, precisamente com base na consciência da frustração neocolonialista, a maioria da população em torno do ideal da libertação nacional.

Além disso, enquanto a classe dirigente nativa se “emburguesa” cada vez mais, o desenvolvimento duma classe trabalhadora integrada por operários citadinos e por proletários agrícolas – todos explorados pela dominação indireta do imperialismo, abre perspectivas novas à evolução da libertação nacional. Essa classe trabalhadora, qualquer que seja o grau de desenvolvimento da sua consciência política (para além de um limite mínimo que é a consciência das suas necessidades), parece constituir a verdadeira vanguarda da luta de libertação nacional no caso neocolonial. Ela não poderá, no entanto, realizar completamente a sua missão no quadro dessa luta (que não acaba com a conquista da independência) se não se aliar solidamente com as outras camadas exploradas: os camponeses em geral (servos, rendeiros, parceiros, pequenos proprietários agrícolas) e a pequena-burguesia nacionalista. A realização dessa aliança exige a mobilização e a organização das forças nacionalistas no quadro (ou pela ação) de uma organização política forte e bem estruturada.

Outra distinção importante a fazer entre a situação colonial e a neocolonial reside nas perspectivas da luta. O caso colonial (em que a nação classe se bate contra as forças de repressão da burguesia do país colonizador) pode conduzir, pelo menos aparentemente, a uma solução nacionalista (revolução nacional); – a nação conquista a sua independência e adota, em hipótese, a estrutura econômica que bem lhe apetece. O caso neocolonial (em que as classes trabalhadoras e os seus aliados se batem simultaneamente contra a burguesia imperialista e a classe dirigente nativa) não é resolvido através de uma solução nacionalista; exige a destruição da estrutura capitalista implantada pelo imperialismo no solo nacional e postula uma solução socialista. Esta distinção resulta principalmente da diferença dos níveis das forças produtivas nos dois casos e do consequente aprofundamento da luta de classes.

Não seria difícil demonstrar que, no tempo, essa distinção é apenas aparente. Basta lembrar que, nas condições históricas atuais – liquidação do imperialismo que lança mão de todos os meios para perpetuar a sua dominação sobre os nossos povos, e consolidação do socialismo sobre uma parte considerável do globo – só duas vias são possíveis para uma nação independente: voltar à dominação imperialista (neocolonialismo, capitalismo, capitalismo de Estado) ou adotar a via socialista. Esta opção, de que depende a compensação dos esforços e sacrifícios pelas massas populares no decurso da luta, é fortemente influenciada pela forma de luta e pelo grau de consciência revolucionária daqueles que a dirigem.

O PAPEL DA VIOLÊNCIA

Os fatos dispensam-nos de usar palavras para provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitarmos o princípio de que a luta de libertação nacional é uma revolução, e que ela não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há nem pode haver libertação nacional sem o uso da violência libertadora, por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo. Ninguém duvida de que, sejam quais forem as suas características locais, a dominação imperialista implica um estado de permanente violência contra as forças nacionalistas. Não há povo no mundo que, tendo sido submetido ao jugo imperialista (colonialista ou neocolonialista) tenha conquistado a sua independência (nominal ou efetiva) sem vítimas, o que importa é determinar quais as formas de violência que vem ser utilizadas pelas forças de libertação nacional, para não só responderem à violência do imperialismo mas também para garantirem, através da luta, a vitória final da sua causa, isto é, a verdadeira independência nacional!

As experiências, passadas e recentes, vividas por alguns povos; a situação atual da luta de libertação nacional no mundo (em especial nos casos do Vietnã, do Congo e do Zimbábue), assim como a própria situação de violência permanente ou, quando menos, de contradições e sobressaltos, em que se encontram alguns países que conquistaram a independência pela via chamada pacífica, mostram-nos que não só os compromissos com o imperialismo são contraproducentes, mas também que a via normal da libertação nacional, imposta aos povos pela repressão imperialista, é a luta armada.

Cremos que não escandalizaremos esta Assembleia ao afirmarmos que a única via eficaz para a realização cabal e definitiva das aspirações dos povos à libertação nacional – é a luta armada. Esta é a grande lição que a história recente e atual de libertação ensina a todos aqueles que estão verdadeiramente empenhados na libertação nacional dos seus povos.

SOBRE A PEQUENA-BURGUESIA

Evidentemente, tanto a eficácia dessa via como a estabilidade da situação a que ela conduz, depois da libertação, dependem não só das características da organização da luta, mas também da consciência política e moral daqueles que, por razões históricas, estão em condições de ser os herdeiros imediatos do Estado colonial ou neocolonial. Ora os fatos têm demonstrado que a única camada social capaz, tanto de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista, como de manipular o aparelho do Estado, herdado dessa dominação, é a pequena-burguesia nativa. Se tivermos em conta as características aleatórias, a complexidade e as tendências naturais inerentes à situação econômica dessa camada social ou classe, vemos que esta fatalidade específica da nossa situação é mais uma das fraquezas do movimento de libertação nacional.

A situação colonial, que não consente o desenvolvimento de uma pseudo burguesia nativa e na qual as massas populares não atingem, em geral, o necessário grau de consciência política antes do desencadeamento do fenômeno da libertação nacional, dá à pequena-burguesia a oportunidade histórica de dirigir a luta contra a dominação estrangeira, em virtude de ser, pela sua situação objetiva e subjetiva (nível de vida superior ao das massas, contatos mais frequentes com os agentes do colonialismo, portanto, maior frequência de humilhações, maior grau de instrução e de cultura política, etc.) a camada que mais cedo realiza a consciência da necessidade de se desembaraçar da dominação estrangeira. Assume esta responsabilidade histórica o setor da pequena-burguesia a que, no contexto colonial, se poderia chamar revolucionária, enquanto os outros setores permanecem na hesitação característica dessa classe ou se aliam ao colonialista para defender, embora ilusoriamente, a sua situação social.

A situação neocolonial, que postula a liquidação da pseudo burguesia nativa para que se consume a libertação nacional, também dá à pequena-burguesia a oportunidade de desempenhar um papel de relevo – mesmo decisivo – na luta pela liquidação estrangeira. Mas, neste caso, em virtude dos progressos relativos realizados na estrutura social, a função de direção da luta é compartilhada em maior ou menor grau, com os setores mais esclarecidos das classes trabalhadoras e até com alguns elementos da pseudo burguesia nacional, dominados pelo sentimento patriótico. O papel do setor da pequena-burguesia que participa na direção da luta é tanto mais importante quanto é certo que, também na situação neocolonial, ela está mais apta a assumir essas funções, quer pelas limitações econômicas e culturais das massas trabalhadoras, quer pelos complexos e limitações de natureza ideológica que caracterizam o setor da pseudo burguesia nacional que adere à luta. Neste caso ainda, importa salientar que a missão que lhe está confiada exige a esse setor da pequena-burguesia uma maior consciência revolucionária, a capacidade de interpretar fielmente as aspirações das massas em cada fase da luta e de se identificar com elas cada vez mais.

Mas, por maior que seja o grau de consciência revolucionária do setor da pequena-burguesia chamada a desempenhar essa função histórica, ela não pode libertar-se desta realidade objetiva: a pequena-burguesia, como classe de serviços, quer dizer, não diretamente incluída no processo da produção, não dispõe de bases econômicas que lhe garantam a tomada do poder. Com efeito, a história demonstra que, qualquer que seja o papel (muitas vezes de importância) desempenhado por indivíduos originários da pequena-burguesia no processo de uma revolução, essa classe nunca esteve na posse do poder político. E não poderia estar, porque o poder político (o Estado) se alicerça na capacidade econômica da classe dirigente e, nas condições da sociedade colonial e neocolonial, essa capacidade está detida nas mãos de duas entidades: o capital imperialista e as classes trabalhadoras nativas.

Para manter o poder que a libertação nacional põe nas suas mãos, a pequena-burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento, permitir o desenvolvimento de uma burguesia burocrática e de intermediários do ciclo das mercadorias, transformar-se em pseudo burguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capital imperialista. Ora isso corresponde à situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objetivos da libertação nacional. Para não trair esses objetivos, a pequena-burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento e as solicitações naturais da sua mentalidade de classe, identificar-se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Isso significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.

Essa alternativa – trair a revolução ou suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena-burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional! A sua solução positiva, em favor da revolução, depende daquilo a que, ainda recentemente, Fidel Castro chamou, com propriedade, de desenvolvimento da consciência revolucionária. Essa dependência atrai necessariamente a nossa atenção sobre a capacidade do dirigente da luta de libertação nacional de se manter fiel aos princípios e à causa fundamental dessa luta. Isso revela, em certa medida, que se a libertação nacional é essencialmente um problema político, as condições do seu desenvolvimento imprimem-lhe algumas características que são do âmbito da moral.

Esta é a modesta contribuição que, em nome das organizações nacionalistas dos países africanos ainda parcialmente ou totalmente dominados pelo colonialismo português, entendemos dever trazer ao debate geral desta Assembleia. Solidamente unidos no seio da nossa organização multinacional – a CONCP – estamos determinados a manter-nos fiéis aos interesses e às justas aspirações dos nossos povos, quaisquer que sejam as nossas origens nas sociedades a que pertencemos. A vigilância em relação a essa fidelidade é, aliás, um dos objetivos principais da nossa organização, no interesse dos nossos povos, da África e da Humanidade em luta contra o imperialismo. Por isso nos batemos já, de armas nas mãos, contra as forças colonialistas portuguesas, em Angola, na Guiné e em Moçambique, e estamos a preparar-nos para fazer o mesmo em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe. Por isso dedicamos a maior atenção ao trabalho político no seio dos nossos povos, melhorando e reforçando cada dia as nossas organizações nacionais, na direção das quais se encontram representados todos os setores da nossa sociedade. Por isso nos mantemos vigilantes contra nós mesmos e procuramos, na base do conhecimento concreto das nossas forças e das nossas fraquezas, reforçar aquelas e transformar estas em forças, pelo desenvolvimento constante da nossa consciência revolucionária. Por isso estamos em Cuba, presentes a esta Conferência.

Não daremos vivas nem proclamaremos aqui a nossa solidariedade para com este ou aquele povo em luta. A nossa presença é um grito de condenação do imperialismo e uma prova de solidariedade para com todos os povos que querem varrer das suas pátrias o jugo imperialista, em particular com o heroico povo do Vietnã. Mas cremos firmemente que a melhor prova que poderemos dar de que somos contra o imperialismo e ativamente solidários para com os nossos companheiros, nesta luta comum, consiste em regressar aos nossos países, desenvolver cada dia mais a luta e mantermo-nos fiéis aos princípios e objetivos da libertação nacional.

Fazemos votos para que cada movimento de libertação nacional aqui presente possa, com armas nas mãos, repetir no seu país, em uníssono com o seu povo, o grito já legendário do Povo de Cuba: PATRIA O MUERTE. VENCEREMOS!

Morte para as forças imperialistas!

Pátria livre, próspera e feliz para cada um dos nossos povos!

VENCEREMOS!

Versão do documento original publicado pelo Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC).

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O Brasil será um novo Vietnã – Entrevista de Carlos Marighella à Revista Front https://revistabacuri.editorialadande.com/marighella-entrevista/ Sat, 28 Dec 2024 00:38:40 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=485 Entrevista realizada em São Paulo, em setembro de 1969, pelo jornalista franco-belga Conrad Detrez para a revista mensal de política internacional Front, e publicada em francês na edição nº 3, em novembro de 1969. A íntegra da entrevista foi traduzida e revisada a partir das fontes no Arquivo BNM, Arquivo Nacional e da versão em francês publicada em Pour la libération du Brésil.

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“O Brasil será um novo Vietnã”, declarou ao nosso enviado especial, Conrad Detrez, o líder revolucionário brasileiro, Carlos Marighella, na entrevista que concedeu antes da sua morte.

Em fins de setembro, em certa localidade de uma grande cidade brasileira, nosso enviado especial se encontrava com Carlos Marighella, o líder da nova vanguarda revolucionária do Brasil. Registrava a primeira entrevista concedida a um jornal europeu. E será a última. Hoje, publicam nos jornais, Carlos Marighella morreu, abatido pela polícia brasileira.

A entrevista que publicamos tem, portanto, maior importância ainda. E é propositalmente que a conservamos tal como havia sido inicialmente redigida, apesar do destino trágico que fez caducar algumas das informações iniciais. Marighella é “inatingível”, escrevíamos. Era verdade, e no entanto, ele foi capturado – provavelmente porque a tortura fez afrouxar alguns dos seus camaradas. O inimigo, provisoriamente, foi o mais forte. E isso é uma informação essencial, nada mais, mesmo porque “considerando que outra mão se levante e outra voz reentoe o canto de guerra”.

Che Guevara morre assassinado a 8 de outubro de 1967. Antes de decorrido dez dias, em Havana, Carlos Marighella redige um pequeno trabalho de uma quinzena de páginas, no qual define os princípios básicos, que condicionam, conforme seu ponto de vista, o lançamento, o desenvolvimento e o sucesso da luta de guerrilha no Brasil. Dedica-o ao “heroico guerrilheiro” cujo “exemplo permanecerá e frutificará em toda América Latina”. O golpe de partida foi dado; o dirigente que acaba de romper com o Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro preferiu continuar a luta iniciada pelo ex-braço direito de Fidel Castro no coração do continente. Ele vai substituí-lo, mas não o imitará; é preciso sair do impasse a que foram levados pela famosa “teoria do foco” sistematizada por Régis Debray, que um pouco, em toda parte, está sendo posta em questão. A superação do “foquismo” não será realizada em reuniões ou em gabinetes, mas nas ruas e na ação. Carlos Marighella tem em mente algumas noções claras: guerrilha urbana, guerrilha rural, mobilidade, guerra de movimento. Por volta do final do ano de 1967, ele entra clandestinamente no Brasil para aí fundar, sob o nome de Ação Libertadora Nacional, grupos dispostos a desencadear com ele a luta armada. A partir de setembro-outubro de 1968, os ataques contra os bancos, quartéis e propriedades de agentes do imperialismo norte-americano multiplicam-se no Rio, São Paulo e Belo Horizonte. A guerrilha urbana começou. Golpes espetaculares ocorreram: o assassinato do capitão Chandler, agente da CIA, a ocupação de estações de rádio e a difusão de mensagens revolucionárias, a libertação de um grupo de militantes da prisão central no Rio, o sequestro em pleno dia, no centro da cidade, do embaixador dos Estados Unidos. “E ações ainda mais importantes se seguirão”, disse-me o próprio Marighella.

Encontrei-o no subúrbio de uma das grandes cidades do país. Há um mês que esperava até que a entrevista foi concedida. Pela primeira vez, desde sua entrada no Brasil, ele aceita responder às perguntas de um jornalista. Mas esse encontro não poderá ser realizado senão quando as condições de segurança forem suficientes; por volta do final de setembro. Todas as polícias o procuram, em colaboração com a CIA e agentes do FBI, chegados no dia seguinte do sequestro do embaixador. Não será fácil encontrá-lo. Guevara foi preciso ser encurralado em um recanto perigoso do solo bolivariano. Marighella encontra-se, um dia no Rio, dois dias após em São Paulo, no quinto dia em Porto Alegre, na semana seguinte em Belo Horizonte, depois em Brasília ou Recife, cidades de mais de 1 milhão de habitantes. Imaginem um homem que na segunda-feira estivesse em Londres, na quarta em Paris, na sexta em Madri, na semana seguinte em Berlim e, alguns dias depois em Belgrado ou Atenas, uma vez que são essas as dimensões do Brasil e, além do mais, é infinitamente menos organizado que a Europa; um homem que ainda por cima, faz, desde há alguns meses, estadas no campo por tempo prolongado; a guerrilha urbana está bem lançada; agora é preciso preparar a guerrilha rural. Assim é Marighella, inatingível, onipresente, um forte e vivo mulato da Bahia. Tem 57 anos, trinta de Partido Comunista, e uns dez de prisão.

Já posso anunciar… Trazem-nos café. Retiro do bolso a minha lista de perguntas, algumas inspiradas pelo muito agitado mês de setembro que acaba de findar.

Conrad Detrez: O que sua organização traz de novo ao movimento revolucionário brasileiro?

Carlos Marighella: A ação! Para nós tudo nasce da ação: a vanguarda, os dirigentes… formamos grupos de combatentes armados. A vanguarda são eles. A direção conserva os mais sagazes (portanto, os mais políticos) e os mais corajosos. A organização vem depois. A maior parte dos outros grupos, mesmo os formados por pessoas oriundas do PC, todos querem, antes de tudo, fundar um partido – um novo PC, com centralismo democrático e tudo – e, por oposição ao PCB, inscrevem em seu programa a luta armada, isto é, a revolução que eles farão mais tarde.

Conrad Detrez: Direção política e direção militar são então uma só coisa?

Carlos Marighella: Absolutamente.

Conrad Detrez: E entre a direção e a base?

Carlos Marighella: Nada. Não há escalonamentos intermediários. Os grupos de base, desde que sejam dentro da perspectiva da nossa estratégia, podem tomar todas as iniciativas que quiserem, uma vez que se trate de ação. O marxismo, ou resulta em prática, ou então não servirá de nada.

Conrad Detrez: Podem haver várias direções político-militares, já que a Ação Libertadora Nacional que você está dirigindo não é a única que defende essas teses? Como então se situa o problema do comando único?

Carlos Marighella: Primeiramente nossa estratégia – uma estratégia de guerra revolucionária para o Brasil (ele insiste nestas últimas palavras) – não é algo fechado, acabado de uma vez por todas. Nossas orientações estão claramente definidas: guerrilha urbana, guerrilha rural, mobilidade, guerra de movimento, aliança armada operário-camponesa, papel tático e complementar da luta na cidade, articulada com a luta no campo, que é a base estratégica da revolução. Além de tudo isso, as organizações que, hoje, lutam com armas na mão, estão de acordo, sem que todas vejam exatamente da mesma maneira o desenvolvimento da luta. Mas elas combatem; é na prática que as coisas se esclarecem, que se fará uma unidade estratégica cada vez maior e que, então, se formará um comando único. O que é certo é que, em volta de uma mesa, nunca se chegará a isto. Um comando único nascido de simples discussões seria artificial; se decomporia logo em seguida.

Conrad Detrez: Nesta estratégia, você distingue três fases: a preparação da guerra de guerrilha, sua deflagração e a transformação da guerra de guerrilha em guerra de movimento. Onde estamos agora no Brasil?

Carlos Marighella: Entramos na segunda fase. A primeira foi formar grupos de combatentes armados, transformar a crise política permanente em uma situação militar, fazer os generais do governo admitirem que a guerra revolucionária tinha de fato começado. A guerrilha urbana está se instalando; a guerrilha rural será desencadeada este ano. Anunciamos a dispersão do inimigo que está organizando manobras antiguerrilha em várias partes do país. Estas regiões, e só estas regiões, ele as conhece bem. Nós não iremos lá.

Conrad Detrez: Por que começar com a guerrilha urbana?

Carlos Marighella: Na situação de ditadura que o país está vivendo, o trabalho de propaganda e divulgação só é possível, a priori, nas cidades. Os movimentos de massas, sobretudo os que haviam sido organizados pelos estudantes, pelos intelectuais, por certos grupos de militantes sindicais, criaram, nas principais cidades do país, um clima político favorável à aceitação de uma luta mais dura (as ações armadas). As medidas antidemocráticas tomadas pelo governo (fechamento do Congresso, supressão das eleições, cassação do mandato parlamentar de mais de 100 deputados e senadores, censura da imprensa de rádio e de televisão) e inúmeros atos de repressão contra estudantes, muitos professores e jornalistas, criaram um clima de revolta. A cumplicidade da população foi conseguida pelos revolucionários. A imprensa clandestina progride. As emissões piratas são recebidas favoravelmente. A cidade reúne, pois, as condições objetivas e subjetivas requeridas para que se possa desencadear com sucesso a guerrilha. No campo, a situação está evidentemente menos favorável. A guerrilha rural deve, portanto, ser posterior à guerrilha urbana, cujo papel é eminentemente tático. Por outro lado, os combatentes que lutarão no campo terão sido testados antes, durante a luta urbana. Os mais corajosos entre eles serão enviados ao campo.

Conrad Detrez: Como você planeja continuar a guerrilha urbana?

Carlos Marighella: Podemos fazer muitas coisas: raptar, dinamitar, atirar nos chefes de polícia, especialmente naqueles que torturam ou assassinam nossos camaradas; depois continuar a expropriar armas e dinheiro. Desejamos que as forças armadas adquiram os mais modernos e eficientes armamentos, nós os roubaremos deles. Posso assegurar desde já que sequestraremos outras personalidades importantes e para objetivos mais amplos do que a libertação de 15 prisioneiros políticos, como foi o caso do sequestro do embaixador americano.

Conrad Detrez: Quem serão os guerrilheiros rurais?

Carlos Marighella: Grupos aos quais serão incorporados homens nascidos no campo e que foram à cidade para trabalhar. Eles foram politizados e treinados lá; agora eles estão voltando para casa. O êxodo rural, que é importante na América Latina, é um fator positivo a este respeito. Aliás, a incorporação dos camponeses à revolução é indispensável se quisermos transformar profundamente a sociedade brasileira. Uma luta que simplesmente opõe a burguesia ao proletariado urbano pode terminar em conciliação, não seria a primeira vez que o proletariado urbano se deixaria integrar neste sistema.

Conrad Detrez: O senhor é maoísta?

Carlos Marighella: Eu sou brasileiro. Sou o que a prática revolucionária realizada no contexto brasileiro fez de mim. Nós seguimos nosso próprio caminho e se chegamos à pontos de vista semelhantes aos de Mao, Ho Chi Minh, Fidel Castro, Guevara, etc., não foi algo de propósito.

Conrad Detrez: O senhor tem, naturalmente, algumas simpatias particulares?

Carlos Marighella: Estive na China entre 1953 e 54. Foi o partido que me mandou para lá. Eu começava, nesta época, a contestar a sua linha e era o mais forte candidato às eleições internas no Estado de São Paulo. O Partido afastou-me, portanto, por algum tempo. Na China estudei bastante a revolução. Mas, se formos falar de inspiração, a nossa vem especialmente de Cuba e do Vietnã. A experiência cubana, para mim, foi determinante, principalmente no que concerne à organização de um grupo inicial de combatentes.

Conrad Detrez: A sua ideologia?

Carlos Marighella: Marxista-leninista. Mas não “ortodoxa”, como dizem. Nós não seguimos nem seguiremos jamais, mesmo após a tomada do poder, nenhuma ortodoxia. Ortodoxia é assunto de igreja.

Conrad Detrez: O empreendimento revolucionário, o senhor mesmo espera realizá-lo?

Carlos Marighella: A questão não é essa. Sei apenas de uma coisa: a marcha revolucionária foi desencadeada, ninguém poderá detê-la. A revolução não é um assunto de alguns; mas sim de um povo e sua vanguarda. Faço parte, por haver dado, com outros camaradas, o golpe de partida. Mas é claro que a luta será longa e que virá o dia em que pessoas mais jovens que eu, deverão me substituir. Aliás, a maior da parte dos militantes que segue nossa orientação é pelo menos 25 anos mais moça do que nós. Chegada a hora, um deles levará minha bandeira ou meu fuzil, se assim preferir.

Conrad Detrez: Será que a guerrilha urbana exclui o movimento de massas, como por exemplo, as greves ou as manifestações estudantis?

Carlos Marighella: Absolutamente. Mas na atual situação de ditadura total, de fascismo absoluto, manifestar, ocupar uma fábrica, sem ser apoiado por grupos armados, seria suicídio. Por ocasião das últimas manifestações no Rio e em São Paulo, alguns estudantes foram mortos. A polícia atirou neles. Para se defender, eles não tinham senão alguns pedaços de pau ou simplesmente nada. Da próxima vez, será diferente; se os operários forem ocupar suas fábricas, eles serão armados previamente. É assim, aliás, que vejo a conjunção da guerrilha urbana e do movimento de massas. Por outro lado, os operários podem muito bem sabotar as máquinas, fabricar armas clandestinamente, destruir o material. Para os homens casados, pais de família, é a única forma de guerrilha possível atualmente.

Conrad Detrez: E o trabalho de massas, isto é, a tomada de consciência, a politização, a organização?

Carlos Marighella: É necessário, mas não necessariamente anterior à luta armada, salvo para a esquerda tradicional. Em termos de guerra revolucionária, trabalho de massas e luta armada são simultâneos e interdependentes; um age sobre o outro e vice-versa.

Conrad Detrez: Pode-se ler em um de seus documentos: “A aliança armada do proletariado, dos camponeses e da classe média urbana é a chave da vitória”. Ora, de acordo com uma revista local, sobre os 150 revolucionários presos ou identificados, 38% são estudantes, 20% militares ou ex-militares, 17% de profissão liberal, 16% funcionários públicos, comerciantes, etc., somente 8% são operários. É representativa a exposição acima? Em caso afirmativo, como equilibrar novamente a balança a favor do proletariado?

Carlos Marighella: Estes números se aplicam apenas à guerrilha urbana e particularmente aos grupos mais comprometidos de combatentes. Aqueles que fazem o trabalho de massa dificilmente foram alcançados, nem aqueles que constituem as redes de apoio logístico. Não deixa de ser verdade que os que mais nos apoiam são, na cidade, a classe média e no campo, os camponeses. Entre as pessoas que foram presas ou identificadas não se encontravam camponeses, simplesmente porque a guerrilha rural ainda não começou. E as bases clandestinas que estamos preparando no campo são ignoradas por todos. É preciso reconhecer que a classe operária ainda está pouco presente na luta, deve-se isso a circunstâncias históricas próprias do Brasil. Entre nós, o movimento sindical que começou por volta de 1930 foi sob impulso do presidente Vargas, chefe do Estado, portanto paternalista. Não houve conquistas operárias, portanto não houve lutas. Houve uma liberalidade por parte de Vargas. Os sindicatos sempre dependeram do Ministério do Trabalho; por conseguinte, sem autonomia. Além disso, nunca houve unidade sindical, o governo tinha o cuidado de fragmentar o movimento do qual, aliás, a base seguia cegamente a direção que por sua vez acompanhava cegamente o governo. Enfim, se nas suas fábricas os operários se mostrassem muito agressivos, havia sempre milhares de emigrantes chegados dos campos para substituí-los. Tudo isto não impediu o desenvolvimento de greves muito duras como, por exemplo, a de Osasco, nos arredores de São Paulo. De qualquer maneira, à medida em que a luta se desenvolver, o proletariado se encontrará um dia, todo ele, na encruzilhada dos caminhos e deverá escolher. Escolherá a luta, porque a burguesia é, historicamente, sua inimiga de classe.

Conrad Detrez: A guerrilha rural surgirá simultaneamente em diversos pontos do Brasil?

Carlos Marighella: Sim. Atacaremos os grandes proprietários de terras brasileiros e americanos. Sequestraremos ou mataremos os que exploram e perseguem os camponeses. Tomaremos os rebanhos e os víveres das grandes fazendas para dá-los aos camponeses. Desorganizaremos a economia rural e não defenderemos nenhuma área, nenhum território, nada disso. Defender é acabar por ser vencido. É preciso que, sempre, em toda parte, como para a guerrilha urbana, que tenhamos a iniciativa. A ofensiva é a vitória. Outro ponto importante é a mobilidade. É essencial para escapar ao cerco e à repressão; portanto, manter a iniciativa. Certamente devem ter reparado que anunciamos muitas vezes quais serão nossas próximas ações. É de propósito; faz parte da nossa estratégia. Isso força o inimigo a dispersar suas tropas e a traçar seus planos de ataque ou de defesa, portanto, a perder a iniciativa do combate. Ele sabe o que nós faremos, mas não sabe nem onde, nem quando, nem como, nós o faremos. Assim, sempre levamos a vantagem; esse é um dos aspectos mais importantes da guerra revolucionária. Um outro princípio importante é a astúcia, e o povo é astucioso.

Conrad Detrez: O senhor é contra as ideias de Régis Debray?

Carlos Marighella: Algumas ideias me foram úteis; no que concerne à teoria do “foco insurrecional” estou em desacor-do.

Conrad Detrez: Os camponeses brasileiros aderirão mais facilmente à luta do que os bolivianos, que são índios e que, por razões históricas, desconfiam dos brancos e dos mestiços? Em outras palavras, o camponês brasileiro será mais permeável?

Carlos Marighella: No Brasil, este negócio de permeabilidade é um falso problema. O verdadeiro problema é o da infraestrutura da guerrilha. Há várias regiões do Brasil onde camponeses negros, brancos, mulatos, cafuzos, mamelucos participaram, com o apoio de estudantes ou de intelectuais, de movimentos políticos às vezes muito combativos como, por exemplo, as Ligas Camponesas de Francisco Julião. É com essa gente que é preciso preparar a infraestrutura de que falo; são eles que devem assegurar o transporte de homens e de víveres; são eles que servirão de guias. Posso mesmo dizer desde já que os setores de informação serão formados pelos próprios camponeses. Pode-se também partir dos seus movimentos de reivindicação, que também serão apoiados por grupos armados. E depois, os camponeses perseguidos virão se refugiar na guerrilha, o que engrossará nossa coluna.

Conrad Detrez: E o cangaço? Não poderá a guerrilha rural degenerar em banditismo de honra como foi o caso para os cangaceiros?

Carlos Marighella: Se ela for integrada dentro de uma estratégia global e conduzida em termos de luta de classes é impossível. 

Conrad Detrez: A extensão continental do Brasil favorece ou desfavorece sua estratégia? 

Carlos Marighella: Favorece. No Brasil a colonização se fez ao longo do litoral. Foi lá que as forças de repressão do poder burguês (tropas, armas, tribunais, prisões…) se instalaram. Do centro para o oeste elas são muito fracas; nesta região o cerco estratégico a partir do litoral é praticamente impossível; existem grandes obstáculos naturais que separam a faixa costeira (mais ou menos 500km de largura) do centro: rios, montanhas, matagais. E depois, o Brasil confronta deste lado com países onde a guerrilha já foi implantada. As dimensões continentais do Brasil desfavorecem a aplicação da “teoria foquista”, mas favorece nossa estratégia de guerra revolucionária. 

Conrad Detrez: No transcurso deste ano, pôde o senhor notar uma evolução positiva no modo pelo qual a população considera a guerrilha urbana?

Carlos Marighella: Certos atos, como a leitura de manifestos pelo rádio, o sequestro do embaixador americano, porque esclarecem o povo sobre o sentido político da nossa luta, suscitaram um forte movimento de simpatia. O mesmo acontece em relação aos saques de dinheiro nos bancos; os pobres sabem muito bem que é o dinheiro dos ricos que nós tomamos e que vai servir para lutar contra aqueles que os oprimem.

Conrad Detrez: A estratégia para o Brasil faz parte de uma estratégia revolucionária continental?

Carlos Marighella: Naturalmente, pois é preciso responder ao plano global do imperialismo norte-americano com um plano global latino-americano. Nós estamos ligados à OLAS como muitas outras organizações revolucionárias do continente, e, em particular, aquelas que, nos países vizinhos, lutam com o mesmo objetivo que nós. Enfim, é um dever face à Cuba libertá-la do cerco imperialista ou aliviá-la da sua pressão, combatendo em toda parte. A revolução cubana é a vanguarda da revolução latino-americana; esta vanguarda deve sobreviver.

Conrad Detrez: Vocês recebem armas ou dinheiro de Cuba?

Carlos Marighella: Não. O Brasil tem muito mais armas e dinheiro do que Fidel Castro. É um imperativo da nossa estratégia tomar armas e dinheiro do inimigo, isto o enfraquece e cria um clima de guerra revolucionária.

Conrad Detrez: Por que acusar o imperialismo americano e nunca o alemão e o japonês?

Carlos Marighella: Porque é fundamentalmente sobre o americano que se apoiam a ditadura e a burguesia. Não morremos de amor pelos outros dois, mas é o imperialismo americano que devemos quebrar. A ruína dos outros se seguirá.

Conrad Detrez: Certos esquerdistas acusam a ALN, que o senhor dirige, de fazer uma luta anti-oligárquica e de libertação nacional, e não uma luta pela revolução socialista.

Carlos Marighella: Antes de fazer o socialismo, é preciso liquidar o aparelho burocrático e militar da reação e esvaziar o país do invasor norte-americano. Nisto seguimos, aliás, a Declaração Geral da OLAS. Como para Cuba, seguindo-se esta orientação chega-se necessariamente ao socialismo.

Conrad Detrez: O senhor acredita que a ditadura militar e a burguesia farão um apelo à intervenção militar americana caso a extensão da guerrilha chegasse a ameaçá-las seriamente?

Carlos Marighella: Creio que as tropas americanas intervirão. A ocupação econômica de agora se tornará também uma ocupação militar, e, portanto, evidente aos olhos de todos; o Brasil então se transformará em um novo Vietnã, algumas dezenas de vezes maior.

Conrad Detrez: É possível que surja no Brasil no seio dos setores armados uma corrente nacionalista ou “nasserista”, capaz de tomar o governo e aplicar uma política semelhante à dos generais peruanos? Em caso afirmativo, não precisaria rever a sua estratégia?

Carlos Marighella: Existe uma corrente nacionalista, mas que não tem nenhuma chance de se impor. Aliás, ser apenas anti-imperialista, no ponto que as coisas chegaram no Brasil, seria pura demagogia. A nossa fase de desenvolvimento é superior à do Peru; as relações econômicas entre os Estados Unidos e o Brasil passam por mecanismos mais complexos. De qualquer forma, mesmo se a corrente dita “nasserista” se impusesse, isto não mudaria em nada nossa estratégia, pois um poder “nasserista” continua a ser um poder burguês; as estruturas da sociedade seriam as mesmas. Digo mais, o Brasil de hoje não é o Peru da véspera da tomada de poder pela Junta; há aqui uma situação de guerra revolucionária que não existia lá. Esta situação leva antes à união das forças armadas do que à rivalidade entre suas diversas tendências. Os militares patriotas no Brasil só têm uma escolha, desertar ou sabotar.

Conrad Detrez: Li em um jornal brasileiro que o “Pravda” havia anunciado o sequestro do embaixador Burke Elbrick como “um ato de um pequeno grupo de desconhecidos”. O que pensa o senhor?

Carlos Marighella: Que o “Pravda” está mal informado, embora disponha dos meios de conhecer a verdade.

Conrad Detrez: E a coexistência pacífica?

Carlos Marighella: É problema dos soviéticos. Para nós, povos do Terceiro Mundo, é inviável.

Conrad Detrez:  Muda alguma coisa o restabelecimento da pena de morte?

Carlos Marighella: A ditadura apenas legalizou uma situação de fato. Antes disso, ela já assassinava nossos camaradas. Esta pena de morte, nós também a aplicaremos.

Conrad Detrez: O aparecimento de uma série de grupos revolucionários autônomos é, segundo sua opinião, positivo. Se assim for, como resolver os problemas de coordenação e unidade estratégicas?

Carlos Marighella: É positivo porque enfraquece os golpes da repressão; os pequenos grupos caem, mas a espinha dorsal do movimento revolucionário permanece intacta. A Ação Libertadora Nacional praticamente não foi atingida; ela está presente em todo o Brasil, desde a embocadura do Amazonas até a fronteira do Uruguai. Quanto à unidade e coordenação da luta, é função da identidade das concepções ideológica e estratégica; é a aplicação de uma mesma estratégia que os integra em um só vasto movimento. A direção deste movimento aparecerá e se afirmará no correr da luta. Um grupo de homens e de mulheres que podem vir de diferentes organizações, se destacará necessariamente e se revelará capaz de conduzir o empreendimento revolucionário a termo. Também, a posição da ALN consiste em ajudar, amparar, fornecer armas e treinar os militantes desses grupos autônomos.

Conrad Detrez: Poderá o eixo Rio-São Paulo representar o papel excepcional que representou o eixo Moscou-Leningrado na Revolução de Outubro?

Carlos Marighella: O triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte constitui doravante a base de sustentação do imperialismo, da burguesia e do latifúndio. É aí que se encontra concentrado todo o poderio do Estado (economia, finanças, forças armadas e policiais, órgãos de propaganda, cultura, etc.). Até pouco tempo, considerava-se que a zona mais propícia para o desencadeamento da revolução era a do Nordeste e esquecia-se de que o setor Rio-São Paulo-Belo Horizonte podia reunir os meios suficientes para sufocar qualquer tentativa revolucionária no Nordeste. Assim, decidimos transferir o centro de gravidade do trabalho revolucionário para o sul do país. A experiência prova que fizemos bem. Conseguimos abalar a referida base de sustentação; obrigamos as forças de repressão a não sair do triângulo onde já tem muito o que fazer e as impedimos, ao mesmo tempo, de ir reprimir as forças revolucionárias em ação no Nordeste e em qualquer outro lugar. Os golpes que desferimos contra as forças reacionárias do triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte são decisivos; é aí que devem ser desferidos os mais violentos. Comparar o eixo Rio-São Paulo com Moscou-Leningrado não é assim tão válido uma vez que em 1917 o papel dessas cidades não estava incluído, como é o nosso caso, na estratégia de guerra revolucionária. Há, todavia, um ponto em comum, talvez sobre o plano de base da reação.

Ao término da entrevista, um casal de pessoas simples nos traz sanduíches, leite, café e frutas. “Eles são católicos” — disse-me Marighella; “nós nos entendemos bem porque eles sabem que eu sou pela liberdade religiosa e pela inteira separação da Igreja e do Estado. Aliás, uma das coisas que mais irrita os generais, é que eles não conseguem lançar a Igreja contra os revolucionários. E não são só grupos católicos que participam da nossa luta; há espíritas, protestantes e todas essas pessoas do povo que frequentam os centros de cultos africanos”. Pergunto-lhe por que ele esperou a Conferência da OLAS, em 1967, para romper com a direção do PCB — “É porque nesta ocasião eu sustentava uma importante luta interna, sobretudo em São Paulo, de onde vieram os primeiros e melhores militantes da ALN. Agora, o partido está muito enfraquecido; Luís Carlos Prestes está velho e prisioneiro de um grupo de burocratas completamente corrompidos pela ideologia burguesa”.

Contou-me ainda sobre o escândalo que fez no Rio, em 1964, alguns dias depois do golpe de Estado. Tinha marcado um encontro com um camarada em um cinema. Na saída, agentes da polícia política o esperavam. Logo que percebeu tentou fugir. Os agentes atiraram, ele recebeu três balas em pleno ventre. Ensanguentado, no meio das pessoas que deixavam a sala, começou a gritar: “Estas balas que estão vendo, doravante serão revidadas contra a ditadura… Eu estava esperando por isso. Depois de dois meses de prisão, foi-me restituída a liberdade, pois a polícia não podia me acusar de outra coisa concreta. Desde então, venho me aprofundando na promessa desta frase”. Quanto à sua origem é assunto reservado. “Nasci na cidade do Salvador, na Bahia: meu pai era um imigrante italiano; minha mãe uma negra. Sou neto de escravos”, acrescentou com uma espécie de orgulho vingador.

Depois da refeição, fomos para um jardim que tinha várias saídas. Deu-me um grande e caloroso abraço e se retirou acompanhado de dois seguranças.

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O socialismo e o homem em Cuba – Che Guevara https://revistabacuri.editorialadande.com/socialismo-che/ Fri, 27 Dec 2024 18:05:26 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=472 Texto escrito em 12 de março de 1965 sob a forma de carta para Carlos Quijano, editor do semanário Marcha, publicado em Montevideu (Uruguai).

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Estimado companheiro:

Termino estas notas durante minha viagem pela África, animado pelo desejo de cumprir, ainda que tardiamente, minha promessa. Gostaria de fazê-lo desenvolvendo o tema do título. Penso que pode ser interessante para os leitores do Uruguai.

É comum ouvir da boca dos porta-vozes do capitalismo, como um argumento na luta ideológica contra o socialismo, a afirmação de que este sistema social, ou o período de construção do socialismo que estamos atualmente vivendo, se caracteriza pela abolição do indivíduo no altar do Estado. Não tentarei refutar esta afirmação a partir de uma base meramente teórica, mas sim estabelecer os fatos tal como acontecem em Cuba e acrescentar comentários de caráter geral. Primeiro, esboçarei em pinceladas gerais a história de nossa luta revolucionária antes e depois da tomada do poder.

Como se sabe, a data exata em que se iniciaram as ações revolucionárias que culminaram com o 1º de janeiro de 1959 foi 26 de julho de 1953. Um grupo de homens dirigidos por Fidel Castro atacou na madrugada desse dia o quartel Moncada, na província de Oriente. O ataque foi um fracasso, o fracasso se transformou em desastre e os sobreviventes foram parar na prisão, para reiniciar, logo depois de terem sido anistiados, a luta revolucionária.

Durante esse processo, no qual existiam apenas germes de socialismo, o homem era um fator fundamental. Nele se confiava, era individualizado, específico, com nome e sobrenome, e o triunfo ou o fracasso da ação empreendida dependia da sua própria capacidade de ação.

Chegou a etapa da luta guerrilheira. Esta se desenvolveu em dois ambientes diferentes: o povo, massa ainda adormecida que precisava ser mobilizada, e sua vanguarda, a guerrilha, motor impulsor da mobilização, gerador de consciência revolucionária e de entusiasmo combativo. Essa vanguarda foi o agente catalisador, aquele que criou as condições subjetivas necessárias à vitória. Também na vanguarda, no marco do processo de proletarização do nosso pensamento, da revolução que se processava em nossos hábitos e nossas mentes, o indivíduo foi o fator fundamental. Cada um dos combatentes da Sierra Maestra que alcançou algum grau superior nas forças revolucionárias tem em sua conta uma história de realizações notáveis. Era em função dessas realizações que conseguia seus galões.

Foi a primeira época heroica, na qual se disputavam para conseguir um cargo de maior responsabilidade, de maior perigo, sem outra satisfação que a do cumprimento do dever. Em nosso trabalho de educação revolucionária, voltamos frequentemente a esse tema instrutivo. Na atitude dos nossos combatentes, vislumbra-se o homem do futuro.

Em outras oportunidades na nossa história se repetiu o fato da entrega total à causa revolucionária. Durante a Crise de Outubro ou durante os dias do furacão Flora, vimos atos de valor e de sacrifícios excepcionais realizados por um povo inteiro. Uma das nossas tarefas fundamentais do ponto de vista ideológico é a de encontrar a fórmula para perpetuar essa atitude heroica na vida cotidiana.

Em janeiro de 1959, foi estabelecido o governo revolucionário com a participação de vários membros da burguesia entreguista. A presença do exército rebelde constituía a garantia do poder como fator fundamental de força.

Em seguida, ocorreram contradições sérias, resolvidas em primeira instância em fevereiro de 1959, quando Fidel Castro assumiu a chefia do governo, com o cargo de primeiro-ministro. O processo culminava com a renúncia do presidente Urrutia diante da pressão das massas, em julho do mesmo ano.

Naquele momento, aparecia na história da Revolução Cubana, com características bem nítidas, um personagem que se repetirá sistematicamente: a massa.

Esse personagem de múltiplas facetas não é, como se pretende, a soma de elementos de uma mesma categoria (reduzidos, aliás, a uma mesma categoria por imposição do sistema), que atua como um manso rebanho. É verdade que segue seus dirigentes sem vacilar, fundamentalmente a Fidel Castro; mas o grau dessa confiança que ele conquistou está em função precisamente da interpretação cabal dos desejos do povo, de suas aspirações e da luta sincera que ele travou para o cumprimento das promessas feitas.

A massa participou na Reforma Agrária e no difícil empenho de administrar as empresas estatais; passou pela experiência heroica da Baía dos Porcos; forjou-se nas lutas contra as várias hordas de bandidos armados pela CIA; viveu uma das definições mais importantes dos tempos modernos na Crise de Outubro e está hoje trabalhando para a construção do socialismo.

Se olharmos as coisas de um ponto de vista superficial, pode parecer que aqueles que falam da subordinação do indivíduo ao Estado têm razão; a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem iguais as tarefas determinadas pelo governo, sejam elas de caráter econômico, cultural, de defesa, esportivo, etc. A iniciativa parte geralmente de Fidel ou do alto comando da revolução, é explicada ao povo, que a acata como sendo sua. Outras vezes, o partido e o governo escolhem experiências localizadas e as generalizam, seguindo o mesmo procedimento.

No entanto, o Estado às vezes se equivoca. Quando um desses equívocos se produz, nota-se uma diminuição do entusiasmo coletivo por meio de uma diminuição quantitativa de cada um dos elementos que a formam, e o trabalho diminui até ficar reduzido a magnitudes insignificantes; este é o momento de retificar. Isso aconteceu em março de 1962, diante de uma política sectária imposta ao partido por Aníbal Escalante.

É evidente que o mecanismo não basta para assegurar uma série de medidas sensatas e que falta uma conexão mais estruturada com as massas. Devemos melhorá-la no curso dos próximos anos, mas, para o caso das iniciativas provindas das instâncias superiores do governo, utilizamos por enquanto o método quase intuitivo de auscultar as reações gerais face aos problemas colocados.

Fidel é mestre nisso, cujo modo particular de integração com o povo só pode ser apreciado vendo-o atuar. Nas grandes concentrações públicas, observa-se algo como o diálogo de dois diapasões, cujas vibrações provocam outras no interlocutor. Fidel e a massa começam a vibrar num diálogo de intensidade crescente até alcançar o clímax num final abrupto coroado por nosso grito de luta e vitória.

O que é difícil entender para quem não vive a experiência da revolução é essa estreita unidade dialética existente entre o indivíduo e a massa, em que ambos se interrelacionam, e a massa, por sua vez, enquanto conjunto de indivíduos, se interrelaciona com os dirigentes.

No capitalismo pode-se verificar alguns fenômenos desse tipo, quando aparecem políticos capazes de conseguir a mobilização popular, mas se não se tratar de um autêntico movimento social, e nesse caso não é totalmente lícito falar de capitalismo, o movimento durará enquanto durar a vida de quem o impulsiona, ou até o fim das ilusões populares, imposto pelo rigor da sociedade capitalista. Nessa sociedade, o homem é dirigido por um frio ordenamento, que habitualmente escapa ao domínio de sua compreensão. O exemplar humano, alienado, tem um cordão umbilical invisível que o liga à sociedade no seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos de sua vida, modela seu caminho e seu destino.

As leis do capitalismo, invisíveis para o homem comum e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este o perceba. Ele vê apenas a amplitude de um horizonte que parece infinito. É apresentado desse modo pela propaganda capitalista, que pretende tirar do caso Rockefeller – verídico ou não – uma lição sobre as possibilidades de êxito. A miséria que é necessária acumular para que surja um exemplo como este e a quantidade de desgraças que uma fortuna dessa magnitude ocasionou para poder existir não aparecem no quadro, e nem sempre as forças populares têm a possibilidade de aclarar esses conceitos (caberia aqui uma indagação sobre como, nos países imperialistas, os trabalhadores perdem seu espírito internacional de classe por causa de uma certa cumplicidade na exploração dos países dependentes e como esse fato, ao mesmo tempo, diminui o espírito de luta das massas no próprio país; mas este é um tema que foge ao propósito destas notas).

De qualquer maneira, mostra-se o caminho com obstáculos que, aparentemente, um indivíduo com as qualidades necessárias pode superar para chegar até a meta. O prêmio é visualizado à distância; o caminho é solitário. Ademais, é uma corrida de lobos: pode-se chegar apenas à custa do fracasso de outros.

Tentarei agora definir o indivíduo, ator desse estranho e apaixonante drama que é a construção do socialismo, em sua dupla existência de ser único e membro da comunidade.

Penso que o mais simples é reconhecer sua qualidade de não feito, de produto não acabado. As falhas do passado se transmitem até o presente na consciência individual, e há necessidade de se fazer um trabalho contínuo para erradicá-las.

O processo é duplo: por um lado, a sociedade atua com sua educação direta e indireta; por outro lado, o indivíduo se submete a um processo consciente de autoeducação.

A nova sociedade em formação tem que competir duramente com o passado. Isso se faz sentir não apenas na consciência individual, na qual pesam os resíduos de uma educação sistematicamente orientada para o isolamento do indivíduo, mas também pelo próprio caráter desse período de transição, quando persistem as relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão sentir na organização da produção e, em consequência, na consciência.

No esquema de Marx se concebia o período de transição como resultado da transformação explosiva do sistema capitalista destruído por suas contradições; na realidade posterior, viu-se como desprendem da árvore imperialista alguns países que constituem os ramos mais débeis, fenômeno previsto por Lenin. Nesses países, o capitalismo se desenvolveu suficientemente para fazer sentir seus efeitos de um ou outro modo sobre o povo, mas não são suas próprias contradições que, esgotadas todas as possibilidades, fazem explodir o sistema. A luta de libertação contra um opressor externo; a miséria provocada por acidentes estranhos como a guerra, cujas consequências fazem recair as classes privilegiadas sobre os explorados; os movimentos de libertação destinados a derrotar regimes neocolonialistas, são os fatores habituais do desencadeamento. A ação consciente faz o resto.

Nesses países, ainda não se produziu uma educação completa para o trabalho social, a riqueza está longe de poder chegar às massas por meio do simples processo de apropriação. O subdesenvolvimento, por um lado, e a habitual fuga de capitais para países “civilizados”, por outro, tornam impossível uma mudança rápida e sem sacrifícios. Resta um grande caminho a percorrer na construção da base econômica, e a tentação de seguir os caminhos trilhados pelo
interesse material como alavanca impulsora de um desenvolvimento acelerado é muito grande.
Corre-se o perigo de que as árvores impeçam de ver o bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com a ajuda das armas legadas pelo capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca etc.), pode-se chegar a um beco sem saída. E chega-se aí depois de percorrer uma longa distância, na qual os caminhos se cruzam muitas vezes e em que é difícil perceber o momento em que se errou
de caminho. Entretanto, a base econômica adaptada fez seu trabalho de corrosão sobre o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, paralelamente à base material, há que se fazer o homem novo.

Daí a importância de escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole fundamentalmente moral, sem esquecer uma correta utilização do estímulo material, sobretudo de natureza social.

Como já disse, em momentos de perigo extremo é fácil potencializar os estímulos morais; para manter sua vigência, é necessário o desenvolvimento de uma consciência na qual os valores adquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve se transformar em uma gigantesca escola.

As grandes linhas do fenômeno são similares ao processo de formação da consciência capitalista em sua primeira época. O capitalismo recorre à força, mas também educa as
pessoas dentro do sistema. A propaganda direta é realizada pelos encarregados de explicar o caráter inevitável de um regime de classe, seja de origem divina, ou por imposição
da natureza como ser mecânico. Isso aplaca as massas, que se veem oprimidas por um mal contra o qual não é possível lutar.

Em seguida, vem a esperança, e é neste ponto que se diferencia dos regimes anteriores de casta, que não apontavam saídas possíveis.

Para alguns, continuará vigente ainda a fórmula de castas: o prêmio para os obedientes consiste no acesso, depois da morte, a outros mundos maravilhosos, onde os bons são
premiados, como acontece na velha tradição. Para outros há inovação: a separação em classes é fatal, mas os indivíduos podem sair da classe a que pertencem por meio do trabalho, da iniciativa, etc. Esse processo e o da autoeducação para o triunfo devem ser profundamente hipócritas: é a demonstração interessada de que uma mentira é verdade.

No nosso caso, a educação direta adquire uma importância muito maior. A explicação é convincente porque é verdadeira: não precisa de subterfúgios. Ela se exerce por meio
do aparato educativo do Estado em função da cultura geral, técnica e ideológica, por meio de organismos como o Ministério da Educação e o aparelho de divulgação do partido. A
educação penetra nas massas e a nova atitude preconizada tende a se converter em hábito; a massa vai incorporando-a e pressiona quem ainda não se educou. Esta é a forma indireta
de educar as massas, tão poderosa quanto a outra.

Mas o processo é consciente: o indivíduo recebe continuamente o impacto do novo poder social e percebe que não está completamente adequado a ele. Sob a influência da
pressão que supõe a educação indireta, ele trata de se acomodar a uma situação que sente como justa e cuja própria falta de desenvolvimento o tinha impedido de fazê-lo até
agora. Ele se autoeduca.

Neste período de construção do socialismo, podemos ver o homem novo que está nascendo. Sua imagem ainda não está acabada, nem poderia estar, já que o processo anda paralelo ao desenvolvimento de novas formas econômicas.

Tirando aqueles cuja falta de educação os faz tender para o caminho solitário, para a autossatisfação de suas ambições, aqueles que, mesmo dentro desse novo panorama de
marcha conjunta, têm a tendência de caminhar isolados da massa que acompanham, o importante é que os homens vão adquirindo cada dia maior consciência da necessidade
de sua incorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importância como motores dela.
Eles já não andam completamente sozinhos por caminhos perdidos em direção a longínquas aspirações. Eles seguem a vanguarda constituída pelo partido, pelos operários da vanguarda e pelos homens da vanguarda que caminham ligados às massas e em estreita comunicação com
elas. As vanguardas têm os olhos voltados para o futuro e sua recompensa, mas esta não é vista como algo individual; o prêmio é a nova sociedade, na qual os homens terão características diferentes: a sociedade do homem comunista.

O caminho é longo e cheio de dificuldades. Às vezes, por se ter enganado de caminho, tem de retroceder; outras vezes, por caminhar depressa demais, nos separamos das massas; em certas ocasiões, por fazê-lo lentamente, sentimos a presença próxima dos que pisam em nossos calcanhares. Em nossa ambição de revolucionários, tentamos caminhar tão depressa quanto possível, abrindo caminhos; mas sabemos que temos de nutrir-nos da massa, e esta somente poderá avançar mais rápido se a animamos com nosso exemplo.

Apesar da importância dada aos estímulos morais, o fato de existir a divisão em dois grupos principais (excluindo, claro, a fração minoritária dos que não participam por uma
razão ou outra da construção do socialismo) aponta a relativa falta de desenvolvimento da consciência social. O grupo de vanguarda é ideologicamente mais avançado que a massa; esta conhece os novos valores, mas insuficientemente.

Enquanto nos primeiros se dá uma mudança qualitativa que lhes permite se sacrificar na sua função de vanguarda, os segundos apenas seguem e devem ser submetidos a estímulos e pressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado que se exerce não somente sobre a classe derrotada, mas também individualmente sobre a classe vencedora.

Tudo isto implica, para seu êxito total, a necessidade de uma série de mecanismos, as instituições revolucionárias. Na imagem das multidões marchando para o futuro
se encaixa o conceito de institucionalização como o de um conjunto harmônico de canais, escalões, represas, aparatos bem consolidados que permitam essa marcha, que permitam a seleção natural daqueles destinados a caminhar na vanguarda e que concedam o prêmio aos que cumprem, e o castigo aos que atentem contra a sociedade em construção.

Essa institucionalidade da revolução ainda não foi alcançada. Buscamos algo novo que permita a perfeita identificação entre o governo e a comunidade em seu conjunto, ajustada às condições peculiares da construção do socialismo e fugindo ao máximo dos lugares-comuns da democracia burguesa, transplantados para a sociedade em formação (como as câmaras legislativas, por exemplo). Foram feitas algumas experiências dedicadas a criar progressivamente a institucionalização da revolução, mas sem maior pressa. O maior freio que encontramos foi o medo de que qualquer aspecto formal nos separe das massas e do indivíduo, nos faça perder de vista a última e mais importante ambição revolucionária, que é a de ver o homem libertado de sua alienação.

Não obstante a carência das instituições, o que deve ser superado gradualmente, as massas agora fazem a história como um conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. O homem, no socialismo, apesar de sua aparente padronização, é mais completo; apesar da falta do mecanismo perfeito para isso, sua possibilidade de se expressar e de influir no aparato social é infinitamente maior.

Mas é preciso ainda acentuar sua participação consciente, individual e coletiva em todos os mecanismos de direção e produção, e ligá-la à ideia da necessidade da educação técnica e ideológica, de maneira que sinta como esses processos são estreitamente interdependentes e seus avanços, paralelos. Desse modo alcançará a total consciência de seu ser social, o que equivale à sua plena realização como criatura humana, uma vez quebradas todas as correntes da alienação.

Isso se traduzirá concretamente na reapropriação de sua natureza por meio do trabalho livre e da expressão de sua própria condição humana por meio da cultura e da arte.

Para que se desenvolva na primeira, o trabalho deve adquirir uma nova condição. A mercadoria homem cessa de existir e se instala um sistema que outorga uma cota pelo cumprimento do dever social. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é apenas a trincheira onde o dever é cumprido. O homem começa a libertar seu pensamento da obrigação penosa que tinha de satisfazer suas necessidades animais por meio do trabalho. Ele começa a se ver retratado em sua obra e a compreender sua magnitude humana por meio do objeto criado, do trabalho realizado. Isso já não significa deixar uma parte de seu ser em forma de força de trabalho vendida, que não lhe pertence mais, mas significa uma emanação de si mesmo, uma contribuição à vida comum em que se reflete; o cumprimento do seu dever social.

Fazemos todo o possível para dar ao trabalho esta nova categoria de dever social e uni-lo, por um lado, ao desenvolvimento da técnica, o que dará condições para uma maior liberdade e, por outro, ao trabalho voluntário, embasado na concepção marxista de que o homem realmente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria.

Claro que existem ainda aspectos coercitivos no trabalho, mesmo quando é voluntário; o homem não transformou toda a coerção que o rodeia num reflexo condicionado de natureza social, e produz ainda, em muitos casos, sob a pressão do meio (compulsão moral, como a chama Fidel). Ainda lhe falta conseguir a plena recriação espiritual diante de sua obra, sem a pressão direta do meio social, mas ligado a ele pelos novos hábitos. Isto será o comunismo.

A mudança não se produz automaticamente na consciência como também não se produz na economia. As variações são lentas e não são rítmicas; há períodos de aceleração, outros de estagnação e inclusive de retrocesso.

Devemos considerar também, como já dissemos antes, que não estamos diante do período puro de transição, como o descreveu Marx na Crítica ao programa de Gotha, mas numa nova fase não prevista por ele; o primeiro período de transição do comunismo ou da construção do socialismo. Isso se dá em meio a violentas lutas de classe e com elementos do capitalismo em seu seio, que obscurecem a compreensão cabal de sua essência.

Se a isso acrescentamos a escolástica que freou o desenvolvimento da filosofia marxista e impediu o tratamento sistemático do período, cuja economia política não se desenvolveu, devemos convir que ainda estamos engatinhando e que é preciso dedicar-se a investigar todas as características primordiais deste período antes de elaborar uma teoria econômica e política de maior alcance.

A teoria resultante dará indefectivelmente maior importância aos dois pilares da construção: a formação do homem novo e o desenvolvimento da técnica. Em ambos os aspectos ainda resta muito por fazer, mas é menos perdoável o atraso no que diz respeito à concepção da técnica como base fundamental, já que aqui não se trata de avançar às cegas, mas de seguir durante bom tempo o caminho aberto pelos países mais adiantados do mundo. Por isso, Fidel insiste tanto sobre a necessidade da formação tecnológica e científica de todo o nosso povo e mais ainda de sua vanguarda.

No campo das ideias que conduzem a atividades não produtivas, é mais fácil ver a divisão entre a necessidade material e a espiritual. Faz muito tempo que o homem tenta se libertar da alienação mediante a cultura e a arte. Ele morre diariamente nas oito ou mais horas enquanto atua como mercadoria, para ressuscitar depois por meio de sua criação espiritual. Mas esse remédio traz os germes da mesma doença: é um ser solitário que busca comunhão com a natureza. Ele defende sua individualidade oprimida pelo meio e reage diante das ideias estéticas como um ser único cuja aspiração é permanecer imaculado.

Trata-se apenas de uma tentativa de fuga. A lei do valor já não é um mero reflexo das relações de produção; os capitalistas monopolistas rodeiam-na de um complicado arcabouço que a converte numa serva dócil, mesmo que os métodos empregados sejam puramente empíricos. A superestrutura impõe um tipo de arte no qual os artistas têm de ser educados. Os rebeldes são dominados pela maquinaria e somente os talentos excepcionais poderão criar
sua própria obra. Os restantes se tornam assalariados envergonhados ou são triturados.
Inventa-se a investigação artística que se dá como definidora da liberdade, mas essa “pesquisa” tem seus limites, imperceptíveis até o momento de se chocar com eles, vale dizer, de se colocarem os problemas reais do homem em sua alienação. A angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvulas cômodas para a preocupação humana; combate-se a ideia de fazer da arte uma arma de denúncia.

Se as regras do jogo são respeitadas, pode-se obter todas as honras: as que ganharia um macaco ao inventar piruetas. A condição é não tentar escapar da jaula invisível.

Quando a revolução tomou o poder, produziu-se o êxodo dos domesticados totais; os demais, revolucionários ou não, viram um novo caminho. A pesquisa artística ganhou novo impulso. No entanto, as rotas estavam mais ou menos traçadas, e o sentido do conceito “fuga” se escondeu por trás da palavra “liberdade”. Os próprios revolucionários mantiveram muitas vezes essa atitude, reflexo do idealismo burguês na consciência.

Em países que passaram por um processo similar, tentou-se combater essas tendências com um dogmatismo exagerado. A cultura geral se converteu quase em um tabu e a representação formalmente exata da natureza foi proclamada o ápice da aspiração cultural, e esta se converteu logo numa representação mecânica da realidade social que se queria fazer ver; a sociedade ideal, quase sem conflitos e contradições, que se buscava criar.

O socialismo é jovem e tem erros.

Nós, os revolucionários, carecemos, muitas vezes, dos conhecimentos e da audácia intelectual necessários para encarar a tarefa do desenvolvimento de um novo homem por métodos diferentes dos convencionais, e os métodos convencionais sofrem a influência da sociedade que os criou (mais uma vez se coloca o tema da relação entre forma e conteúdo). A desorientação é grande, e os problemas da construção material nos absorvem. Não existem
artistas reconhecidos que, por sua vez, tenham grande autoridade revolucionária. Os homens do partido devem assumir essa tarefa e tentar conseguir o objetivo principal: educar o povo.

Busca-se então a simplificação, que é o que todo mundo entende e que é também o que os funcionários entendem. A pesquisa artística autêntica é anulada e o problema da cultura geral é reduzido a uma apropriação do presente socialista e do passado morto (portanto, não perigoso). Assim nasce o realismo socialista sobre as bases da arte do século passado.

Mas a arte realista do século XIX também é de classe, talvez mais puramente capitalista do que esta arte decadente do século XX, em que transparece a angústia do homem alienado. O capitalismo em termos de cultura já deu tudo de si e dele não resta nada senão o anúncio de um cadáver fedorento na arte, sua decadência atual. Mas por que pretender buscar
nas formas congeladas do realismo socialista a única receita válida? Não se pode opor ao realismo socialista a “liberdade”, porque esta não existe ainda e não existirá até o desenvolvi-
mento completo da sociedade nova, mas não se deve pretender condenar todas as formas de arte posteriores à primeira metade do século XIX, resolutamente desde o trono pontifício do realismo, pois se cairia num erro proudhoniano de retorno ao passado, colocando camisa de força na expressão artística do homem que nasce e se constrói hoje.

Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico e cultural que permita a pesquisa e destrua a erva daninha tão facilmente multiplicável no terreno beneficiado da subvenção estatal.

No nosso país, o erro do mecanicismo realista não ocorreu; mas sim um outro de signo contrário. E deu-se por não se ter compreendido a necessidade da criação do homem novo que não seja o representado pelas ideias do século XIX, nem tampouco pelas do nosso século decadente e mórbido. O homem do século XXI é aquele que devemos criar, mesmo que ainda seja uma aspiração subjetiva e não sistematizada. Este é precisamente um dos pontos funda-
mentais do nosso estudo e do nosso trabalho e, à medida que consigamos êxitos concretos sobre uma base teórica, ou, vice-versa, se extraiam conclusões teóricas de caráter amplo sobre a base de nossa pesquisa concreta, teremos dado uma contribuição valiosa ao marxismo-leninismo, à causa da humanidade. A reação contra o homem do século XIX nos fez cair na reincidência do decadentismo do século XX. Não é um erro demasiadamente grave, mas devemos superá-lo sob pena de abrir um largo espaço ao revisionismo.

As grandes multidões estão se desenvolvendo, as novas ideias vão alcançando ímpeto adequado no seio da sociedade, e as possibilidades materiais de desenvolvimento integral de absolutamente todos seus membros tornam o labor muito mais frutífero. O presente é de lutas; o futuro nos pertencem.

Resumindo, a culpabilidade de muitos dos nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original; não são autenticamente revolucionários. Podemos tentar enxertar o olmo para que dê peras, mas simultaneamente temos que plantar a pereira. As novas gerações virão livres do pecado original. As probabilidades de que surjam artistas excepcionais serão tanto maiores quanto mais se tenha ampliado o campo da cultura e a possibilidade de expressão. Nossa tarefa consiste em impedir que a geração atual, desarticulada por seus conflitos, se perverta e perverta as novas. Não devemos criar assalariados dóceis ao pensamento oficial, nem “bolsistas” que vivam do amparo governamental, exercendo uma liberdade entre aspas. Logo virão os revolucionários que entoam o canto do homem novo com a voz autêntica do povo. É um processo que exige tempo.

Na nossa sociedade, a juventude e o Partido Comunista desempenham um grande papel.

A primeira é particularmente importante, por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das falhas anteriores.

Ela recebe um tratamento de acordo com nossas ambições. Sua educação é cada vez mais completa e não esquecemos sua integração com o trabalho desde os primeiros momentos. Nossos bolsistas fazem trabalho físico durante suas férias ou simultaneamente com o estudo. O trabalho em certos casos é um prêmio, em outros, um instrumento de educação, mas nunca um castigo. Uma nova geração nasce.

O partido é uma organização de vanguarda. Os melhores trabalhadores são propostos por seus companheiros para integrá-lo. Ele é minoritário, mas de grande autoridade pela qualidade de seus quadros. Nossa aspiração é que o partido seja de massas, mas quando as massas tenham alcançado o nível de desenvolvimento da vanguarda, quer dizer, quando estejam educadas para o comunismo. O trabalho é dirigido para essa educação. O partido é o exemplo vivo: seus quadros devem dar aulas de laboriosidade e sacrifício, devem levar, com sua ação, as massas até o fim da tarefa revolucionária, o que implica anos de dura luta contra as dificuldades da construção, dos inimigos de classe, os flagelos do passado, o imperialismo…

Eu queria agora explicar o papel desempenhado pela personalidade pelo homem como indivíduo dirigente das massas que fazem a história. É nossa experiência e não uma
receita.

Nos primeiros anos, Fidel deu à revolução o impulso, a direção, a tônica sempre, mas existe um bom grupo de revolucionários que se desenvolveu no mesmo sentido que o dirigente máximo, e uma grande massa que segue seus dirigentes porque tem fé neles; e tem fé neles porque souberam interpretar seus anseios.

Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem de quantas belezas que vêm do exterior podem ser compradas com os salários atuais. Trata-se, precisamente, do indivíduo sentir-se mais pleno, com muito mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade. O indivíduo do nosso país sabe que a época gloriosa em que lhe é dado viver é de sacrifício; conhece o sacrifício. Os primeiros o conheceram na Sierra Maestra e onde quer que se tenha lutado; depois o conhecemos em toda Cuba. Cuba é a vanguarda da América e deve fazer sacrifícios por ocupar justamente o lugar de vanguarda e porque indica às massas da América Latina o caminho da liberdade total.

No interior do país, os dirigentes devem cumprir seu papel de vanguarda; e temos de dizê-lo com toda a sinceridade, em uma revolução verdadeira, na qual se dá tudo, da qual não se espera nenhuma retribuição material: a tarefa do revolucionário de vanguarda é, ao mesmo tempo, magnífica e angustiante.

Deixe-me dizer, com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade. Talvez este seja um dos grandes dramas do dirigente; ele deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem contrair um só músculo. Nossos revolucionários de vanguarda devem idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas, e torná-lo único e indivisível. Não podemos baixar com sua pequena dose de carinho cotidiano até os lugares onde o homem comum o pratica.

Os dirigentes da revolução têm filhos que em seus primeiros balbucios não aprendem a chamar o pai; mulheres que devem ser parte do sacrifício geral de sua vida para levar a revolução ao seu destino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao marco dos companheiros de revolução. Não há vida fora dela.

Nessas condições, deve-se ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentimento de justiça e de verdade para não cair em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, em isolamento das massas. Todos os dias deve-se lutar para que esse amor à humanidade viva e se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplos, de mobilização.

O revolucionário, motor ideológico da revolução dentro do seu partido, se consome nessa atividade ininterrupta, cujo único fim é a morte, a não ser que a construção se realize em escala mundial. Se seu afã revolucionário diminui quando as tarefas mais prementes se veem realizadas em escala local, e se esquece o internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e acaba numa modorra cômoda da qual se aproveitam
nossos inimigos irreconciliáveis, o imperialismo, que ganha terreno. O internacionalismo proletário é um dever, mas também uma necessidade revolucionária. Desse modo educamos nosso povo.

Claro que existem perigos presentes nas circunstâncias atuais. Não apenas o do dogmatismo, não apenas de congelar as relações com as massas em meio à grande tarefa, mas existe também o perigo das debilidades nas quais se pode cair. Se o homem pensa que para dedicar sua vida inteira à revolução ele não pode distrair sua mente com a preocupação da falta de um determinado produto para o filho, com o fato de os sapatos das crianças estarem acabando, com o fato de sua família carecer de determinado bem necessário, ele, com esse raciocínio, deixa que se infiltre o germe da futura corrupção.

No nosso caso, temos mantido que nossos filhos devem ter e carecer daquilo que têm e daquilo que carecem os filhos do homem comum e que nossa família deve compreendê-lo e lutar por isso. A revolução se faz por meio do homem, mas o homem deve forjar dia a dia seu espírito revolucionário.

Assim vamos marchando. À cabeça da imensa coluna – não temos vergonha, nem nos intimida dizê-lo – está Fidel, depois estão os melhores quadros do partido e imediatamente depois, tão perto que sua enorme força pode ser sentida, está o povo em seu conjunto; sólida armação de individualidades que caminham até um fim comum; indivíduos que chegaram à consciência do que é necessário fazer; homens que lutam para sair do reino da necessidade e entrar no da liberdade.

Essa imensa multidão se ordena; sua ordem corresponde à consciência da necessidade dela; já não é mais uma força dispersa, divisível em mil frações projetadas no espaço como fragmentos de granadas, procurando apenas alcançar, por qualquer meio, numa luta travada contra seus semelhantes, uma posição ou algo que dê uma segurança diante de um futuro incerto.

Sabemos que existem sacrifícios à nossa frente e que devemos pagar um preço pelo fato heroico de constituir uma vanguarda como nação. Nós, dirigentes, sabemos que temos um preço a pagar por ter o direito de dizer que estamos à cabeça do povo que está à cabeça da América. Todos e cada um de nós paga pontualmente sua cota de sacrifício, conscientes de receber o prêmio na satisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todos até o homem novo que se vislumbra no horizonte.

Permita-me tentar algumas conclusões:

Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres.

O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-lhe apenas a substância proteica e a roupagem; nós as criaremos.

Nossa liberdade e seu sustento cotidiano têm cor de sangue e estão repletas de sacrifícios.

Nosso sacrifício é consciente; cota para pagar a liberdade que construímos.

O caminho é longo e, em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos.

Nós nos forjaremos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica.

A personalidade desempenha o papel de mobilização e de direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e não se afasta do caminho.

Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhores dentre os bons, o partido.

O alicerce fundamental da nossa obra é a juventude: nela depositamos nossa esperança e a preparamos para tomar a bandeira das nossas mãos.

Se esta carta balbuciante esclarece alguma coisa, cumpriu o objetivo a que me propus.

Receba nossa saudação ritual, com um aperto de mãos ou um “Ave-maria puríssima”.

Pátria ou morte.

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Presidente Fred, o messias pantera https://revistabacuri.editorialadande.com/presidente-fred/ Fri, 27 Dec 2024 00:41:46 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=456 Artigo publicado como apresentação do livro “Poder em Qualquer Lugar Onde Haja Povo” (2021), de Fred Hampton, edição conjunta do Editorial Adandé e do TraduAgindo.

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No início do ano letivo no campus leste da Escola Secundária Proviso, um colégio com maioria de estudantes negros em Maywood, nas proximidades de Chicago, em Illinois (EUA), os professores reúnem os novos alunos e contam a história do mais célebre personagem histórico daquela comunidade e antigo aluno da escola, o revolucionário Frederick Allen Hampton.

Fred Hampton nasceu em Summit, um subúrbio no condado de Cook a sudoeste de Chicago, em 30 de agosto de 1948, sendo o filho mais novo de três irmãos do casal Francis Allen e Iberia Hampton. Os Hampton haviam migrado da Louisiana nos anos 1930 e se estabelecido em Argo, nos arredores de Chicago, onde começaram a trabalhar na indústria do milho. Foi na Corn Products Refining Company que conheceram a família Till, e Iberia Hampton com Fred ainda bebê passou tomar conta também do filho de sua amiga Mamie Till, o jovem Emmett Louis Till. Nos anos 1950, os Hampton se mudam para Blue Island antes de se estabelecerem finalmente em Maywood, em 1958, e Mamie Till e o jovem Emmett seguem para o sul de Chicago. Emmett é enviado para a casa de um tio no Mississippi, na pequena cidade de Money, no condado de Montgomery. Em 28 de agosto de 1955, com apenas 14 anos de idade, Emmett Louis seria brutalmente assassinado por brancos racistas, após ser acusado de assobiar para uma mulher branca dentro de um mercado. O jovem Emmett seria sequestrado da casa de seu tio, o reverendo Moses Wright, levado para um galpão nas proximidades da cidade, onde foi espancado e teve seu olho arrancado, antes de ser covardemente morto a tiros, tendo seu corpo jogado no rio Tallahatchie e encontrado dias depois. Os dois assassinos racistas foram absolvidos e o caso de Emmett Till provocou a indignação e a revolta no povo negro em todo o país, servindo de catalisador para o Movimento dos Direitos Civis. Fred Hampton, ainda criança, teria seu primeiro contato com a luta de libertação negra nos EUA quando sua família participa dos protestos e boicotes, liderados por Luther King e Rosa Parks, contra o assassinato daquele jovem que foi criado com ele por sua mãe.       

O jovem Fred demonstrava desde muito novo o carisma e um espírito de liderança nato que marcariam sua trajetória política. Na Escola Primária Irving, foi capitão dos “Patrol Boys”, que ajudavam outros estudantes a atravessarem em segurança as ruas nos arredores da escola. Quando se transferiu para o campus leste da Escola Secundária Proviso, integrou o Interracial Cross Section Committee, um grupo interracial de jovens antirracistas, e se tornou também presidente do Junior Achievement Program, uma organização que apoiava o desenvolvimento econômico comunitário. Nesse período, Fred lidera vitoriosos protestos contra as condições racistas do colégio, pela implementação da história afro-americana na grade curricular e organiza manifestações contra a prisão injusta e racista de um de seus colegas, Eugene Moore.

Após se formar com honras no ensino médio, em 1966, Fred se matricula no programa de direito da faculdade comunitária Triton College, pois pretendia ser advogado e usar a profissão para combater a brutalidade policial. Em 1967, Hampton seria recrutado por Don Williams, presidente local da NAACP, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, passando a ser presidente do conselho juvenil local da organização.   

Enquanto Fred desenvolve e radicaliza sua militância, chegando a ser preso em setembro de 1967 acusado de incitar o tumulto e uma agressão contra um policial, após liderar um movimento contra a segregação nas piscinas públicas e locais de lazer em Maywood, o Partido Pantera Negra (BPP, na sigla em inglês), que havia sido fundado por Bobby Seale e Huey P. Newton em 15 de outubro de 1966, ainda com o nome de Partido do Pantera Negra para Autodefesa naBaía de São Francisco, na Califórnia, vai ganhando força e se espalhando pelos EUA. A organização, que apresenta seu Programa de Dez Pontos e adota a pantera preta como símbolo, se destaca no processo de radicalização da luta negra nos EUA na segunda metade dos anos 1960, período que seria profundamente marcado por dezenas de levantes populares e rebeliões negras pelo país, assim como, pelos assassinatos de Malcolm X, então líder da Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU) após sua ruptura com a Nação do Islã (NOI), em 21 de fevereiro 1965, e do reverendo Martin Luther King Jr. (MLK), em 4 de abril de 1968, líder da Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC) e a mais importante figura pública do Movimento dos Direitos Civis.

O Partido Pantera Negra, que irá se inscrever com uma das principais referências na longa tradição radical negra dos EUA até sua extinção no início dos anos 1980, realiza suas primeiras ações em Oakland, na Califórnia, através de patrulhas armadas, portando também as leis locais e câmeras, para acompanhar e intimidar a violência racista e a brutalidade policial nos bairros negros de São Francisco. Tendo Bobby Seale como Presidente e Huey P. Newton como Ministro da Defesa, principal teórico e figura pública da organização, o BBP abre seu primeiro escritório em janeiro de 1967 e recebe importantes adesões, como de David Hilliard, que se tornaria dirigente nacional e Chefe de Gabinete, e de Eldridge Cleaver, escritor que havia sido companheiro de Malcolm X na OAAU e assume a condição de Ministro da Informação. Os panteras negras se expandem na Califórnia e logo começam receber adesões em outros estados, principalmente após o episódio da “invasão de Sacramento”, quando uma caravana de panteras armados se dirige até Sacramento, capital da Califórnia, para protestar contra a aprovação da “Lei Mulford”, ocupando a Assembleia Legislativa estadual.

Defendendo uma linha revolucionária para a luta de libertação negra, usando uma estética própria e exibindo armas ostensivamente, além de desenvolver um importante conjunto de programas comunitários, o partido transmite uma imagem de poder e ousadia, causando um grande impacto na comunidade negra, mas também provocando o ódio da mídia racista, de políticos conservadores e da repressão que em junho de 1967 cria o ilegal COINTELPRO, programa de contrainteligência do FBI (Federal Bureau of Investigation), para “expor, perturbar, desorientar, desacreditar ou neutralizar” as lideranças e organizações negras nos EUA, com a máquina repressiva chegando a classificar o Partido Pantera Negra como “a maior ameaça para a segurança interna do país” (sobre os detalhes da formação do BPP, ver “O Manejo Correto de uma Revolução”, de Huey P. Newton, primeiro livro da Coleção Panterismo). 

A liderança de Fred Hampton no setor de juventude do NAACP seria marcante. Mais de 500 jovens negros dos subúrbios de Chicago aderem à organização, Fred chama a atenção pela sagacidade de sua oratória e seu papel de organizador político, dividindo comícios com Stokely Carmichael, então líder do Comitê Coordenador Estudantil Não-Violento (SNCC) e com Richard G. Hatcher, um dos primeiros prefeitos negros dos EUA, na cidade de Gary, em Indiana. O jovem ativista negro também articula importantes alianças com lideranças dos direitos civis como o reverendo Jesse Jackson, o ativista Dick Gregory e o padre George Clements. No final de 1967, as atividades de Hampton em Illinois passam a ser monitoradas pelo FBI.

Em 1968, Fred é falsamente acusado de roubar 71 dólares e espancar o motorista de um caminhão de sorvete, ainda respondendo esse processo e completando seu processo crescente de radicalização, Hampton rompe com a NAACP no meio desse ano e funda em novembro de 1968, junto com Bobby Rush, líder local do SNCC e estudante universitário de Chicago, o Capítulo de Illinois do Partido Pantera Negra. Chicago era então um dos centros do supremacismo branco nos EUA, e o próprio MLK diria, após uma marcha no Marquette Park em agosto de 1966 ser atacada por brancos racistas de Chicago, que nem mesmo no Mississippi ou no Alabama havia visto tanto ódio racial.         

Ainda em fins de 1968, o Capítulo de Illinois abre seu escritório no centro de Chicago, logo Hampton é nomeado como presidente da seção do BPP e Chefe de Gabinete adjunto nacionalmente (por isso, foi comumente chamado também de “vice-presidente”), Bobby Rush assume a condição Ministro da Defesa adjunto, com o partido de Illinois recebendo a adesão de muitos militantes da NAACP, crescendo rapidamente e se tornando uma das principais seções do partido nacionalmente. É nesse momento que o FBI infiltra o agente William O’Neal na organização. O’Neal se torna chefe de segurança local e guarda-costas de Hampton.

O presidente Fred, como passou a ser conhecido, lidera negociações para pacificar as gangues de rua de Chicago, como os Vice Lords e os Blackstone Rangers, e também dá início aos programas comunitários de sobrevivência em Illinois. O Programa de Café da Manhã para Crianças, a Clínica de Saúde, além de ônibus para familiares de presos, serviços jurídicos, creches, bancos de roupas e serviços de ambulância são alguns dos programas gratuitos oferecidos para milhares de pessoas negras pelo Partido Pantera Negra em Illinois. Em abril de 1969, Hampton, que havia sido detido no início do ano por armações policiais, seria também condenado pelo caso do caminhão de sorvete, tendo sua fiança negada por, segundo sua acusação, defender uma revolução popular e socialista nos Estados Unidos. A repressão racista dos EUA abre uma brutal ofensiva também sobre o partido em Chicago, o pantera Larry Roberson é assassinado e a sede do BPP é invadida com os jornais e materiais dos programas de sobrevivência sendo queimados pela polícia. Diversos tiroteios entre panteras de Chicago e porcos fascistas são registrados.

A ofensiva sobre o partido em Illinois, e particularmente a prisão de Hampton, não são por acaso. O presidente Fred havia concluído com êxito, pouco antes de ser preso, as negociações políticas entre as diversas organizações populares de Chicago que culminaram na formação da Rainbow Coalition. A famosa Coalizão Arco-Íris, que teve como importante articulador o dirigente pantera Bob Lee, foi lançada simbolicamente na data de 1 ano do assassinato de MLK e conseguiu reunir os brancos pobres apalachianos da Young Patriots Organization, a organização revolucionária porto-riquenha Young Lords Party (YLP), liderada por José Cha Cha Jiménez, se juntaram ainda a Poor People’s Coalition, o SDS (Students for a Democratic Society), os chicanos do Brown Berets, os nativos indígenas do American Indian Movement e os chineses do Red Guard Party, além de outros grupos menores e as gangues de rua pacificadas pelo trabalho do BPP. A poderosa articulação da Coalizão Arco-Íris, com um programa anticapitalista e antirracista de solidariedade entre os oprimidos, assim como, a veemente oratória de Hampton, fazem com que J. Edgar Hoover, o famigerado diretor do FBI, afirme naquele momento que o presidente Fred poderia se tornar um novo messias, capaz de unificar e incendiar a luta negra e popular nos EUA.   

Em agosto de 1969, a Suprema Corte concede a Hampton o direito à fiança e ele retorna para Chicago, quando é recebido com grande entusiasmo e profere seu famoso discurso da People’s Church. O presidente Fred defende com afinco as posições do Comitê Central do Partido Pantera Negra nas disputas internas e as elaborações de Huey P. Newton acerca da aplicação do marxismo-leninismo às condições e a experiência concreta do povo negro como uma “colônia interna” nos EUA, o que o leva à condição de porta-voz de posições contra Stokely Carmichael, antigo líder do SNCC e que havia se tornado presidente de honra do BPP, antes de romper com a organização por discordar da linha de unidade revolucionária multirracial e antifascista dos panteras, e depois, assumindo uma forte postura contra a linha da Weather Underground Organization (WUO), na ocasião que envolveu os protestos contra a guerra no Vietnã e os chamados “Dias de Fúria” em outubro de 1969, que ocasionaram na prisão do presidente Bobby Seale e no famoso caso dos “7 de Chicago”. As duras críticas de Fred também se direcionaram, ainda com mais veemência, contra o nacionalismo cultural da US Organization e o papel reacionário do grupo liderado por Ron (Maulana) Karenga.

Fred, com apenas 21 anos, se torna, cada vez mais, uma ameaça ao fascismo norte-americano e um alvo a ser eliminado, sua morte é uma decisão premeditada da repressão racista. Além do infiltrado William O’Neal, o informante e traidor que entregou a planta baixa da casa e colocou sonífero na água na noite anterior, o assassinato de Hampton em 4 de dezembro de 1969, envolveu uma cadeia de reacionários sob as ordens do FBI que conspiraram para matar o líder do Partido Pantera Negra em Illinois e a mais promissora liderança pantera no país. O Departamento de Polícia de Chicago e a máquina do Partido Democrata, na figura do promotor do condado de Cook, Edward Hanrahan, utilizando o argumento da “guerra às gangues” foi essencial para a operação ilegal e criminosa do FBI. Informações posteriores revelariam que até mesmo que o co-fundador da Anistia Internacional, Luis Kutner, passou informações para facilitar a ação. Um grupo de 14 homens do FBI e da CIA, armados com submetralhadoras, pistolas e rifles semiautomáticos invadiram a casa na rua WMonroe pela frente e pelos fundos, arrombando as portas às 4:30h da madrugada onde dormiam ao todo nove panteras, disparando quase 100 tiros e matando a queimar roupa primeiro o pantera Mark Clark, de 22 anos, que fazia a segurança, e depois o presidente Fred, enquanto dormia dopado por O’Neal ao lado de sua companheira gravida de nove meses, Deborah Johnson, além de espancarem os demais panteras sobreviventes do ataque.

Os métodos do assassinato de Hampton, não por acaso, foram os mesmos utilizados pela máquina fascista e supremacista branca da América racista contra Luther King e Malcolm X. Edward Hanrahan, articulador político dos assassinatos, sentenciaria as mortes de Fred e Clark como “homicídio justificável”. A Weather Underground, na sequência, realiza diversos atentados à bomba para denunciar as mortes, mas apenas em 1983, com o afastamento de Hanrahan, as famílias dos panteras conseguiriam vitórias judiciais comprovando os crimes de Estado. Fred se inscreveu na história ao mesmo lado de Sojourner Truth, Nat Turner, Harriet Tubman, Malcolm X e MLK, seu legado impulsionou o Partido Pantera Negra ao seu auge e sua linha revolucionária continua atual e necessária. A memória de Fred, registrada em produções audiovisuais, locais públicos e organizações negras, como a de todo herói do povo também foi apropriada por oportunistas. Utilizando o nome da Coalizão Arco-Íris, cuja original se desarticulou com a morte de Hampton, Harold Washington foi eleito o primeiro prefeito negro de Chicago em 1983 pelo Partido Democrata. Na campanha e gestão de Harold Washington trabalhou um jovem que iniciava sua carreira política e viria a ser presidente dos EUA, Barack Hussein Obama, responsável por uma das gestões mais agressivas do imperialismo norte-americano contra os povos do mundo.   

Esta publicação, que reúne os principais discursos registrados e entrevistas de Hampton, é um esforço coletivo do Editorial Adandé e do TraduAgindo para homenagear a memória do presidente Fred na passagem dos 50 anos de seu brutal assassinato, sendo uma publicação inédita não apenas em português, pois este conjunto de discursos, textos e entrevistas não haviam sido disponibilizados antes nem mesmo em inglês. O exemplo de Fred Hampton, sua disposição para construção da unidade entre os oprimidos e a defesa intransigente da luta revolucionária e socialista, com o povo negro e colonizado assumindo a vanguarda do processo de libertação e emancipação humana, é um exemplo vivo para as lutas dos povos do mundo, e particularmente para nós, que lutamos pela revolução social no Brasil e na América Latina. 

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Assata, aquela que luta https://revistabacuri.editorialadande.com/assata/ Fri, 27 Dec 2024 00:38:22 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=453 Artigo publicado como apresentação do livro Assata Shakur – Revolucionária Negra, parte da Coleção Panterismo do Editorial Adandé.

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É um fim de manhã ensolarado de uma terça-feira, dia 11 de setembro de 1979, e o tempo seco de outono é uma característica desse período em Nova Jersey. Por volta das 11h, um operativo batizado como “A Família” leva a cabo uma ação de expropriação do carro-forte que saia carregado de dólares da loja de departamentos Bamberger’s, no distrito de Paramus. Dois guardas são feitos reféns e os revolucionários que pertenciam ao Exército de Libertação Negra (BLA, na sigla em inglês) e a Organização Comunista de 19 de Maio (M19CO) conseguem levar 105 mil dólares, após uma bem sucedida fuga e a liberação dos guardas. O comando guerrilheiro, do qual participam Mutulu Shakur, Marilyn Buck, Kuwasi Balagoon e outros revolucionários negros tem um objetivo claro, financiar a operação para libertar Assata Shakur.

Quase dois meses após a expropriação de Paramus, em 2 de novembro daquele ano, um novo operativo de “A Família” irá colocar em prática o plano de libertação de Assata. Os revolucionários que protagonizaram a ação sintetizam bem o cenário da luta armada revolucionária nos EUA em fins dos anos 1970, após uma década inteira de brutal repressão do FBI e do COINTELPRO que atingiu fortemente não apenas os panteras negras e o BLA, mas também a Weather Underground Organization (WUO) e as organizações revolucionárias de chicanos, porto-riquenhos e nativos americanos. O Dr. Mutulu Shakur, foi um integrante do Revolutionary Action Movement (RAM) e um dos fundadores da Republic of New Afrika (RNA) que se juntou aos ex-panteras na formação do BLA, se casou com Afeni Shakur em 1975 e foi padrasto de quem anos mais tarde viria a ser o maior ícone do rap nos EUA, Tupac Shakur. Sekou Odinga, havia se juntado a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU), fundada por Malcolm X, antes de se tornar uma liderança do Partido Pantera Negra em Nova York, depois participar da seção internacional do BPP liderada por Eldridge Cleaver na Argélia e finalmente aderir ao BLA. Marilyn Jean Buck foi uma poeta marxista e militante anti-imperialista que compôs o Comitê Organizador Fogo na Pradaria (PFOC, na sigla em inglês), primeiro ligada a WUO e depois a May 19th Communist Organization, sendo a única mulher branca a também participar organicamente do BLA. Silvia Baraldini, uma revolucionária ítalo-americana que participou ativamente da mobilização no caso Panther 21 e no apoio a organização revolucionária porto-riquenha Fuerzas Armadas de Liberación Nacional (FALN), foi também do PFOC e da M19CO. Mtyari Sundiata foi um integrante da Republic of New Afrika que aderiu ao BLA. 

Na data que entraria para a história política dos EUA como o “Dia da Libertação de Assata Shakur”, Odinga se passando por visitante e aproveitando o baixo nível de segurança da penitenciária consegue entrar no Clinton Correctional Facility for Women, em Nova Jersey, após localizar JoAnne Chesimard lhe passa uma arma e rendem os guardas prisionais usando pistolas, tomam uma van do Centro Correcional e conseguem escapar com Cleo, codinome usado para identificar Assata, que é caracterizada pela repressão como a alma do Black Liberation Army. Mutulu, Mtyari Sundiata e Marilyn Buck também estão presentes na ação, um segundo carro dirigido Silvia Baraldini ainda é usado na fuga após abandoarem a van e os guardas sequestrados. Assata é levada para um aparelho e vai permanecer por alguns meses clandestina em diversos locais do país até seguir em fuga para as Bahamas em 1980 e ser acolhida como exilada política pelo governo cubano oficialmente em 1984. Diversas demonstrações de solidariedade do movimento de libertação negra ocorrem nos EUA e um grande ato é realizado alguns dias após a ação de libertação de Assata com cerca de 5 mil manifestantes em Nova York carregando cartazes com a palavra de ordem “Assata Shakur é bem-vinda aqui”, demonstrando apoio a JoAnne e a reivindicação do BLA por uma nação negra independente.   

Assata Shakur desempenhou um papel importante no processo de reorganização do Exército de Libertação Negra que havia sido atingindo por uma brutal repressão após a intensa atividade armada que a organização desenvolveu entre 1971-72, mas foi a partir do episódio da sua prisão em 2 de maio de 1973, os sete julgamentos criminais contra ela que se seguiram até 1977 e a mobilização realizada pelo Comitê em Defesa de Assata Shakur, que JoAnne tornou-se uma figura pública nacionalmente conhecida. No incidente de 1973, que ocorreu quando um carro com integrantes do BLA foi parado pela polícia na autoestrada de Nova Jersey, Assata e o policial estadual James Harper foram baleados, Zayd Malik Shakur e o policial Werner Foerster morreram, Assata ficou ferida, sendo presa juntamente com Sundiata Acoli.

O BLA não era uma organização de tipo tradicional, era muito mais um conceito organizacional, com grupos armados que atuavam de forma compartimentada e com pouca coordenação entre si, sem uma liderança central. A formação do BLA remonta a dois fatores fundamentais da luta de libertação negra nos EUA, primeiro ao processo de radicalização de Malcolm X no fim de sua vida e a orientação política que deu contornos iniciais a noção de “nacionalismo negro revolucionário”, e segundo, as violentas lutas internas dentro do Partido Pantera Negra em 1971, cujo símbolo maior foi o bate-boca público entre Huey Newton e Eldridge Cleaver, mas que envolveram também a expulsão de Geronimo Ji-Jaga, então Vice-Ministro da Defesa do Partido, a briga entre o Comitê Central e o capítulo de Nova York no contexto do caso Panther 21, e os assassinatos dos panteras Robert Webb e Samuel Napler, que foram atribuídos as facções em luta no BPP.           

El-Hajj Malik Al-Shabazz, ou Malcolm X, a mais proeminente figura da luta negra nos EUA, ao lado de Martin Luther King Jr., havia rompido com a Nação do Islã (NOI) e a filosofia de Elijah Muhammad em 1964, ao se afastar da NOI da qual foi um eloquente porta-voz, fundou a Organização da Unidade Afro-Americana (OUAA) e coordenou um projeto político paralelo com Max Stanford, que havia fundado em 1962 o Movimento de Ação Revolucionária (RAM, na sigla em inglês), uma organização que mesclou o nacionalismo negro e a orientação marxista-leninista com forte influência maoísta, iniciando a construção das Guardas Negras como seu braço armado. Segundo Malcolm, a OUAA deveria ser uma frente ampla com atuação pública e o RAM a organização clandestina e armada para autodefesa do povo negro. O movimento de Malcolm para avançar no projeto de uma organização nacionalista negra revolucionária envolvia também Robert F. Williams, antigo líder da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), então exiliado em Cuba e depois na China maoísta, e que viria a se tornar presidente honorário da República da Nova África.

O projeto nacionalista nacionalismo negro revolucionário de Malcolm, Stanford e Williams, seria fortemente abalado com o assassinato do carismático líder muçulmano negro em 21 de fevereiro de 1965, que falsamente foi atribuído a NOI, mas que sempre teve por trás a CIA e o FBI. A morte de Malcolm foi um duro golpe para a luta de libertação negra nos EUA, mas a linha política do RAM terá sequência tanto no Partido Pantera Negra, quanto no Exército de Libertação Negra.

Fundado por Bobby Seale e Huey Newton em 15 de outubro de 1966 como Partido Pantera Negra para Autodefesa, o BPP teve uma ascensão meteórica. Em 1970, classificado como “a maior ameaça à segurança interna do país” pelo diretor do FBI, J. Edgar Hoover, o partido reunia milhares de militantes e apoiadores, com 250 mil leitores do jornal The Black Panther, quase 70 escritórios espalhados pelos EUA e mais de 60 programas comunitários de sobrevivência funcionando por todo o país que envolviam alimentação, saúde, educação, moradia, etc. A mobilização das massas negras marginalizadas e a política de unidade antifascista, multirracial e revolucionária com os demais setores oprimidos na América racista que se materializou na formação da “Frente Unida Contra o Fascismo” (UFAF), reunindo organizações de chicanos, porto-riquenhos, brancos pobres, povos originários e outros setores, alertava o governo dos EUA, que manteve uma política permanente de perseguição, prisão e assassinatos de lideranças, como do promissor presidente dos panteras em Illinois, Fred Hampton, 4 de dezembro de 1969. O partido, que entendia o povo negro como uma “colônia interna” dos EUA, também conseguiu um forte respaldo internacional de regimes socialistas como da China, de Cuba, do Vietnã e da Coreia Popular, além de manter uma seção internacional do partido baseada na Argélia (ver detalhes em O Manejo Correto de uma Revolução, Huey P. Newton, 2021, Coleção Panterismo).

A saída de Huey da prisão em 1970 e o processo de controle do partido pelo Comitê Central abrem também uma grave crise interna a partir de 1971, agravada em muito pelo alto e sofisticado nível de repressão do COINTELPRO, uma operação de guerra do FBI através de um programa ilegal e clandestino, cujo objetivo, segundo o próprio J. Edgar Hoover, era “expor, perturbar, desviar, desacreditar, neutralizar e eliminar” militantes e dirigentes do BPP.  O FBI produz centenas informações falsas e infiltrações, que somadas as divergências ideológicas e as lutas internas, ocasionam expurgos, proibição de novos membros e diversos problemas dentro da organização. É a soma da divergência entre Newton e Eldridge Cleaver, que acusou o Ministro da Defesa de desvios reformistas, e a crise entre capítulo de Nova York e o Comitê Central, onde as lideranças de NY acusam o CC de falta de apoio jurídico e financeiro para o caso Panther 21 e são acusados, por sua vez, de desvios reacionários e “nacionalistas culturais”, que vão colaborar com o racha entre as facções em luta e o surgimento do Black Liberation Army. 

A retórica revolucionária de Cleaver, que se desloca do exílio em Cuba para a Argélia, alegando falta de apoio do governo revolucionário da Ilha para a luta armada nos EUA, se soma ao trabalho de mobilização clandestina para a guerrilha urbana realizado por Geronimo Ji-Jaga, que era um experiente ex-militar condecorado do Vietnã e foi expulso por Huey do partido, além da liderança de Zayd Shakur, de Dhoruba bin Wahad e de Sekou Odinga, que retornou da Argélia na clandestinidade, possibilitam a formação da nova organização, que mesmo com uma estrutura mais descentralizada controla boa parte do antigo BBP em Nova York, alguns capítulos locais pelo país e dá início a um novo jornal, o Right On!.

Renegando, em certa medida, a liderança de Cleaver do exterior e o nome Exército de Libertação Afro-Americano que havia sugerido, mas conseguindo aglutinar também membros veteranos da luta negra radical do RAM e da RNA, além de ex-panteras e outros grupos negros, a primeira fase do BLA é marcada pela controversa liderança de Dhoruba bin Wahad e uma alto grau de violência e repressão. A guerrilha negra, atuando muitas vezes de forma coordenada com os radicais brancos da Weather Underground, responde à guerra racial da América contra o povo negro com assassinatos de policiais, expropriações e atentados em diversas partes dos EUA. A pesada repressão que se abate sobre o BLA e a WOU, induz ao trabalho cada vez mais coordenado entre as organizações revolucionárias, também surgem novos grupos armados como a M19CO, a partir da destruição da Weather Underground e com uma liderança feminina, além do polêmico Exército Simbionês de Libertação (SLA) entre 1973-75, as combativas Fuerzas Armadas de Liberación Nacional porto-riquenha, a partir de 1976, e a maoísta New World Liberation Front (NWLF), em 1977, que com outros grupos radicais menores mantém viva a opção pela luta armada revolucionária no coração da besta imperialista por toda a década de 1970, realizando dezenas e dezenas de atentados, expropriações e ações de propaganda armada. Surgem experiências de colaboração político-militar como “A Família” e o BLA vai se reinventando nesses anos sob a liderança de Mulutu Shakur, mantendo suas atividades armadas até 1981, quando a maioria dos seus combatentes estavam finalmente mortos, presos ou exilados. A luta armada nos EUA ainda se estenderia heroicamente até 1985 com a M19CO, a United Freedom Front (UFF) e ações pulverizadas de pequenos grupos revolucionários.

É dessa geração de revolucionários e revolucionárias que decidiram enfrentar o demônio yankee dentro da sua própria casa que Assata Shakur faz parte. Uma representante do mais avançado setor da luta de libertação negra nos EUA. Sua bem-sucedida fuga da prisão através da ação do comando guerrilheiro “A Família” em 1979 representou uma grande humilhação para a aperfeiçoada e brutal repressão da América racista. Vivendo exilada em Cuba sob proteção do governo socialista desde 1984, Assata Shakur é uma mulher negra que simboliza a luta revolucionária contra o racismo e o capitalismo, que ousou enfrentar o Império e por isso figura no topo da lista de terroristas mais procuradas pelo FBI desde 2013, com uma recompensa de U$ 2 milhões por sua captura.

A opção radical de JoAnne Deborah Byron, seu nome de batismo, pode ser sintetizada pela passagem da sua Carta ao Meu Povo, quando afirma que “revolucionários negros não caem do céu”, e completa dizendo que “somos criados por nossas condições” e “moldados na nossa opressão”. JoAnne nasceu em 16 de julho de 1947, no bairro pobre conhecido como South Jamaica, no Queens, em Nova York, mas passou parte da infância com seus avós em Wilmington, na Carolina do Norte, e retornou para Nova York, onde concluiu seus estudos e foi acolhida por sua tia materna, Evelyn A. Williams, uma ativista negra dos direitos civis.

Em 1967 foi presa pela primeira vez após protestos estudantis, e nesse mesmo ano, se casou com seu colega e ativista, Louis Chesimard. Mudou-se para Oakland, onde ingressou no Partido Pantera Negra e atuou nos programas de sobrevivência. Após se separar em 1970, voltou para Nova York onde assumiu um papel de liderança no capítulo do BPP no Harlem. A partir da influência da República da Nova Áfrika, organização revolucionária da qual Betty Shabazz, viúva de Malcolm, era uma integrante notável, e que levantou a reivindicação de uma nação negra independente na região do chamado “Cinturão Negro”, no sudeste dos EUA, JoAnne adotou a partir de 1971 o nome Assata Olugbala Shakur. Assata vem da tradição muçulmana na África Ocidental e significa “aquela que luta”, Olugbala é um nome yorubá que significa “amor pelo povo” ou “salvação”, Shakur significa “agradecido” e foi adotado como sobrenome por JoAnne pelo fato de ter sido adotada simbolicamente por El Hajj Sallahudin Shakur, um veterano muçulmano negro próximo a Malcolm X, pai biológico dos panteras que também aderiram ao BLA, Zayd Malik e Lumumba Abdul Shakur, que foi marido de Afeni, mãe de Tupac. O nome tem origem histórica em Muhammad ibn ‘Ali ‘Abd ash-Shakur, o último Emir de Harar na Etiópia (1856-1875). 

Absolvida em seis dos sete julgamentos que enfrentou, Assata engravidou de Kamau Sadiki em 1973, seu companheiro de BLA e também preso político, dando à luz ainda encarcerada a sua primeira e única filha, Kukuya Amala. Tratada barbaramente na prisão, foi condenada à prisão perpétua em 1977 por um júri racista em um julgamento tendencioso. Assata se definiu como “uma revolucionária negra”, que declarou “guerra aos ricos que prosperam com a nossa pobreza, aos políticos que mentem para nós com rostos sorridentes e a todos os estúpidos, robôs sem coração que protegem a eles e a sua riqueza”, se tornando um símbolo de resistência contra a América racista, cantada em músicas como “Rebel Without a Pause” do Public Enemy, “A Song for Assata” de Common e “Words of Wisdom” do seu afilhado Tupac Shakur, também foi tema de documentários e seu caso permanece com uma questão diplomática entre Cuba e os diferentes governos reacionários dos EUA.

Nesta antologia política que apresentamos aqui com novas traduções, cartas, documentos e entrevistas, Assata narra por suas próprias palavras a trajetória de uma prisioneira de guerra e exilada política que “defendeu e segue defendendo mudanças revolucionárias”, com o “fim da exploração capitalista, a abolição das políticas racistas, a erradicação do sexismo e a eliminação das políticas de repressão”, como afirmou em sua Carta ao Papa.

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