FORMAÇÃO PARA REVOLUÇÃO Archives - BACURI https://revistabacuri.editorialadande.com/category/formacao/ revista de teoria, política e história Fri, 27 Dec 2024 00:41:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 https://i0.wp.com/revistabacuri.editorialadande.com/wp-content/uploads/2024/12/Avatar-RB.png?fit=32%2C32&ssl=1 FORMAÇÃO PARA REVOLUÇÃO Archives - BACURI https://revistabacuri.editorialadande.com/category/formacao/ 32 32 244458957 Presidente Fred, o messias pantera https://revistabacuri.editorialadande.com/presidente-fred/ Fri, 27 Dec 2024 00:41:46 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=456 Artigo publicado como apresentação do livro “Poder em Qualquer Lugar Onde Haja Povo” (2021), de Fred Hampton, edição conjunta do Editorial Adandé e do TraduAgindo.

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No início do ano letivo no campus leste da Escola Secundária Proviso, um colégio com maioria de estudantes negros em Maywood, nas proximidades de Chicago, em Illinois (EUA), os professores reúnem os novos alunos e contam a história do mais célebre personagem histórico daquela comunidade e antigo aluno da escola, o revolucionário Frederick Allen Hampton.

Fred Hampton nasceu em Summit, um subúrbio no condado de Cook a sudoeste de Chicago, em 30 de agosto de 1948, sendo o filho mais novo de três irmãos do casal Francis Allen e Iberia Hampton. Os Hampton haviam migrado da Louisiana nos anos 1930 e se estabelecido em Argo, nos arredores de Chicago, onde começaram a trabalhar na indústria do milho. Foi na Corn Products Refining Company que conheceram a família Till, e Iberia Hampton com Fred ainda bebê passou tomar conta também do filho de sua amiga Mamie Till, o jovem Emmett Louis Till. Nos anos 1950, os Hampton se mudam para Blue Island antes de se estabelecerem finalmente em Maywood, em 1958, e Mamie Till e o jovem Emmett seguem para o sul de Chicago. Emmett é enviado para a casa de um tio no Mississippi, na pequena cidade de Money, no condado de Montgomery. Em 28 de agosto de 1955, com apenas 14 anos de idade, Emmett Louis seria brutalmente assassinado por brancos racistas, após ser acusado de assobiar para uma mulher branca dentro de um mercado. O jovem Emmett seria sequestrado da casa de seu tio, o reverendo Moses Wright, levado para um galpão nas proximidades da cidade, onde foi espancado e teve seu olho arrancado, antes de ser covardemente morto a tiros, tendo seu corpo jogado no rio Tallahatchie e encontrado dias depois. Os dois assassinos racistas foram absolvidos e o caso de Emmett Till provocou a indignação e a revolta no povo negro em todo o país, servindo de catalisador para o Movimento dos Direitos Civis. Fred Hampton, ainda criança, teria seu primeiro contato com a luta de libertação negra nos EUA quando sua família participa dos protestos e boicotes, liderados por Luther King e Rosa Parks, contra o assassinato daquele jovem que foi criado com ele por sua mãe.       

O jovem Fred demonstrava desde muito novo o carisma e um espírito de liderança nato que marcariam sua trajetória política. Na Escola Primária Irving, foi capitão dos “Patrol Boys”, que ajudavam outros estudantes a atravessarem em segurança as ruas nos arredores da escola. Quando se transferiu para o campus leste da Escola Secundária Proviso, integrou o Interracial Cross Section Committee, um grupo interracial de jovens antirracistas, e se tornou também presidente do Junior Achievement Program, uma organização que apoiava o desenvolvimento econômico comunitário. Nesse período, Fred lidera vitoriosos protestos contra as condições racistas do colégio, pela implementação da história afro-americana na grade curricular e organiza manifestações contra a prisão injusta e racista de um de seus colegas, Eugene Moore.

Após se formar com honras no ensino médio, em 1966, Fred se matricula no programa de direito da faculdade comunitária Triton College, pois pretendia ser advogado e usar a profissão para combater a brutalidade policial. Em 1967, Hampton seria recrutado por Don Williams, presidente local da NAACP, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, passando a ser presidente do conselho juvenil local da organização.   

Enquanto Fred desenvolve e radicaliza sua militância, chegando a ser preso em setembro de 1967 acusado de incitar o tumulto e uma agressão contra um policial, após liderar um movimento contra a segregação nas piscinas públicas e locais de lazer em Maywood, o Partido Pantera Negra (BPP, na sigla em inglês), que havia sido fundado por Bobby Seale e Huey P. Newton em 15 de outubro de 1966, ainda com o nome de Partido do Pantera Negra para Autodefesa naBaía de São Francisco, na Califórnia, vai ganhando força e se espalhando pelos EUA. A organização, que apresenta seu Programa de Dez Pontos e adota a pantera preta como símbolo, se destaca no processo de radicalização da luta negra nos EUA na segunda metade dos anos 1960, período que seria profundamente marcado por dezenas de levantes populares e rebeliões negras pelo país, assim como, pelos assassinatos de Malcolm X, então líder da Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU) após sua ruptura com a Nação do Islã (NOI), em 21 de fevereiro 1965, e do reverendo Martin Luther King Jr. (MLK), em 4 de abril de 1968, líder da Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC) e a mais importante figura pública do Movimento dos Direitos Civis.

O Partido Pantera Negra, que irá se inscrever com uma das principais referências na longa tradição radical negra dos EUA até sua extinção no início dos anos 1980, realiza suas primeiras ações em Oakland, na Califórnia, através de patrulhas armadas, portando também as leis locais e câmeras, para acompanhar e intimidar a violência racista e a brutalidade policial nos bairros negros de São Francisco. Tendo Bobby Seale como Presidente e Huey P. Newton como Ministro da Defesa, principal teórico e figura pública da organização, o BBP abre seu primeiro escritório em janeiro de 1967 e recebe importantes adesões, como de David Hilliard, que se tornaria dirigente nacional e Chefe de Gabinete, e de Eldridge Cleaver, escritor que havia sido companheiro de Malcolm X na OAAU e assume a condição de Ministro da Informação. Os panteras negras se expandem na Califórnia e logo começam receber adesões em outros estados, principalmente após o episódio da “invasão de Sacramento”, quando uma caravana de panteras armados se dirige até Sacramento, capital da Califórnia, para protestar contra a aprovação da “Lei Mulford”, ocupando a Assembleia Legislativa estadual.

Defendendo uma linha revolucionária para a luta de libertação negra, usando uma estética própria e exibindo armas ostensivamente, além de desenvolver um importante conjunto de programas comunitários, o partido transmite uma imagem de poder e ousadia, causando um grande impacto na comunidade negra, mas também provocando o ódio da mídia racista, de políticos conservadores e da repressão que em junho de 1967 cria o ilegal COINTELPRO, programa de contrainteligência do FBI (Federal Bureau of Investigation), para “expor, perturbar, desorientar, desacreditar ou neutralizar” as lideranças e organizações negras nos EUA, com a máquina repressiva chegando a classificar o Partido Pantera Negra como “a maior ameaça para a segurança interna do país” (sobre os detalhes da formação do BPP, ver “O Manejo Correto de uma Revolução”, de Huey P. Newton, primeiro livro da Coleção Panterismo). 

A liderança de Fred Hampton no setor de juventude do NAACP seria marcante. Mais de 500 jovens negros dos subúrbios de Chicago aderem à organização, Fred chama a atenção pela sagacidade de sua oratória e seu papel de organizador político, dividindo comícios com Stokely Carmichael, então líder do Comitê Coordenador Estudantil Não-Violento (SNCC) e com Richard G. Hatcher, um dos primeiros prefeitos negros dos EUA, na cidade de Gary, em Indiana. O jovem ativista negro também articula importantes alianças com lideranças dos direitos civis como o reverendo Jesse Jackson, o ativista Dick Gregory e o padre George Clements. No final de 1967, as atividades de Hampton em Illinois passam a ser monitoradas pelo FBI.

Em 1968, Fred é falsamente acusado de roubar 71 dólares e espancar o motorista de um caminhão de sorvete, ainda respondendo esse processo e completando seu processo crescente de radicalização, Hampton rompe com a NAACP no meio desse ano e funda em novembro de 1968, junto com Bobby Rush, líder local do SNCC e estudante universitário de Chicago, o Capítulo de Illinois do Partido Pantera Negra. Chicago era então um dos centros do supremacismo branco nos EUA, e o próprio MLK diria, após uma marcha no Marquette Park em agosto de 1966 ser atacada por brancos racistas de Chicago, que nem mesmo no Mississippi ou no Alabama havia visto tanto ódio racial.         

Ainda em fins de 1968, o Capítulo de Illinois abre seu escritório no centro de Chicago, logo Hampton é nomeado como presidente da seção do BPP e Chefe de Gabinete adjunto nacionalmente (por isso, foi comumente chamado também de “vice-presidente”), Bobby Rush assume a condição Ministro da Defesa adjunto, com o partido de Illinois recebendo a adesão de muitos militantes da NAACP, crescendo rapidamente e se tornando uma das principais seções do partido nacionalmente. É nesse momento que o FBI infiltra o agente William O’Neal na organização. O’Neal se torna chefe de segurança local e guarda-costas de Hampton.

O presidente Fred, como passou a ser conhecido, lidera negociações para pacificar as gangues de rua de Chicago, como os Vice Lords e os Blackstone Rangers, e também dá início aos programas comunitários de sobrevivência em Illinois. O Programa de Café da Manhã para Crianças, a Clínica de Saúde, além de ônibus para familiares de presos, serviços jurídicos, creches, bancos de roupas e serviços de ambulância são alguns dos programas gratuitos oferecidos para milhares de pessoas negras pelo Partido Pantera Negra em Illinois. Em abril de 1969, Hampton, que havia sido detido no início do ano por armações policiais, seria também condenado pelo caso do caminhão de sorvete, tendo sua fiança negada por, segundo sua acusação, defender uma revolução popular e socialista nos Estados Unidos. A repressão racista dos EUA abre uma brutal ofensiva também sobre o partido em Chicago, o pantera Larry Roberson é assassinado e a sede do BPP é invadida com os jornais e materiais dos programas de sobrevivência sendo queimados pela polícia. Diversos tiroteios entre panteras de Chicago e porcos fascistas são registrados.

A ofensiva sobre o partido em Illinois, e particularmente a prisão de Hampton, não são por acaso. O presidente Fred havia concluído com êxito, pouco antes de ser preso, as negociações políticas entre as diversas organizações populares de Chicago que culminaram na formação da Rainbow Coalition. A famosa Coalizão Arco-Íris, que teve como importante articulador o dirigente pantera Bob Lee, foi lançada simbolicamente na data de 1 ano do assassinato de MLK e conseguiu reunir os brancos pobres apalachianos da Young Patriots Organization, a organização revolucionária porto-riquenha Young Lords Party (YLP), liderada por José Cha Cha Jiménez, se juntaram ainda a Poor People’s Coalition, o SDS (Students for a Democratic Society), os chicanos do Brown Berets, os nativos indígenas do American Indian Movement e os chineses do Red Guard Party, além de outros grupos menores e as gangues de rua pacificadas pelo trabalho do BPP. A poderosa articulação da Coalizão Arco-Íris, com um programa anticapitalista e antirracista de solidariedade entre os oprimidos, assim como, a veemente oratória de Hampton, fazem com que J. Edgar Hoover, o famigerado diretor do FBI, afirme naquele momento que o presidente Fred poderia se tornar um novo messias, capaz de unificar e incendiar a luta negra e popular nos EUA.   

Em agosto de 1969, a Suprema Corte concede a Hampton o direito à fiança e ele retorna para Chicago, quando é recebido com grande entusiasmo e profere seu famoso discurso da People’s Church. O presidente Fred defende com afinco as posições do Comitê Central do Partido Pantera Negra nas disputas internas e as elaborações de Huey P. Newton acerca da aplicação do marxismo-leninismo às condições e a experiência concreta do povo negro como uma “colônia interna” nos EUA, o que o leva à condição de porta-voz de posições contra Stokely Carmichael, antigo líder do SNCC e que havia se tornado presidente de honra do BPP, antes de romper com a organização por discordar da linha de unidade revolucionária multirracial e antifascista dos panteras, e depois, assumindo uma forte postura contra a linha da Weather Underground Organization (WUO), na ocasião que envolveu os protestos contra a guerra no Vietnã e os chamados “Dias de Fúria” em outubro de 1969, que ocasionaram na prisão do presidente Bobby Seale e no famoso caso dos “7 de Chicago”. As duras críticas de Fred também se direcionaram, ainda com mais veemência, contra o nacionalismo cultural da US Organization e o papel reacionário do grupo liderado por Ron (Maulana) Karenga.

Fred, com apenas 21 anos, se torna, cada vez mais, uma ameaça ao fascismo norte-americano e um alvo a ser eliminado, sua morte é uma decisão premeditada da repressão racista. Além do infiltrado William O’Neal, o informante e traidor que entregou a planta baixa da casa e colocou sonífero na água na noite anterior, o assassinato de Hampton em 4 de dezembro de 1969, envolveu uma cadeia de reacionários sob as ordens do FBI que conspiraram para matar o líder do Partido Pantera Negra em Illinois e a mais promissora liderança pantera no país. O Departamento de Polícia de Chicago e a máquina do Partido Democrata, na figura do promotor do condado de Cook, Edward Hanrahan, utilizando o argumento da “guerra às gangues” foi essencial para a operação ilegal e criminosa do FBI. Informações posteriores revelariam que até mesmo que o co-fundador da Anistia Internacional, Luis Kutner, passou informações para facilitar a ação. Um grupo de 14 homens do FBI e da CIA, armados com submetralhadoras, pistolas e rifles semiautomáticos invadiram a casa na rua WMonroe pela frente e pelos fundos, arrombando as portas às 4:30h da madrugada onde dormiam ao todo nove panteras, disparando quase 100 tiros e matando a queimar roupa primeiro o pantera Mark Clark, de 22 anos, que fazia a segurança, e depois o presidente Fred, enquanto dormia dopado por O’Neal ao lado de sua companheira gravida de nove meses, Deborah Johnson, além de espancarem os demais panteras sobreviventes do ataque.

Os métodos do assassinato de Hampton, não por acaso, foram os mesmos utilizados pela máquina fascista e supremacista branca da América racista contra Luther King e Malcolm X. Edward Hanrahan, articulador político dos assassinatos, sentenciaria as mortes de Fred e Clark como “homicídio justificável”. A Weather Underground, na sequência, realiza diversos atentados à bomba para denunciar as mortes, mas apenas em 1983, com o afastamento de Hanrahan, as famílias dos panteras conseguiriam vitórias judiciais comprovando os crimes de Estado. Fred se inscreveu na história ao mesmo lado de Sojourner Truth, Nat Turner, Harriet Tubman, Malcolm X e MLK, seu legado impulsionou o Partido Pantera Negra ao seu auge e sua linha revolucionária continua atual e necessária. A memória de Fred, registrada em produções audiovisuais, locais públicos e organizações negras, como a de todo herói do povo também foi apropriada por oportunistas. Utilizando o nome da Coalizão Arco-Íris, cuja original se desarticulou com a morte de Hampton, Harold Washington foi eleito o primeiro prefeito negro de Chicago em 1983 pelo Partido Democrata. Na campanha e gestão de Harold Washington trabalhou um jovem que iniciava sua carreira política e viria a ser presidente dos EUA, Barack Hussein Obama, responsável por uma das gestões mais agressivas do imperialismo norte-americano contra os povos do mundo.   

Esta publicação, que reúne os principais discursos registrados e entrevistas de Hampton, é um esforço coletivo do Editorial Adandé e do TraduAgindo para homenagear a memória do presidente Fred na passagem dos 50 anos de seu brutal assassinato, sendo uma publicação inédita não apenas em português, pois este conjunto de discursos, textos e entrevistas não haviam sido disponibilizados antes nem mesmo em inglês. O exemplo de Fred Hampton, sua disposição para construção da unidade entre os oprimidos e a defesa intransigente da luta revolucionária e socialista, com o povo negro e colonizado assumindo a vanguarda do processo de libertação e emancipação humana, é um exemplo vivo para as lutas dos povos do mundo, e particularmente para nós, que lutamos pela revolução social no Brasil e na América Latina. 

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Assata, aquela que luta https://revistabacuri.editorialadande.com/assata/ Fri, 27 Dec 2024 00:38:22 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=453 Artigo publicado como apresentação do livro Assata Shakur – Revolucionária Negra, parte da Coleção Panterismo do Editorial Adandé.

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É um fim de manhã ensolarado de uma terça-feira, dia 11 de setembro de 1979, e o tempo seco de outono é uma característica desse período em Nova Jersey. Por volta das 11h, um operativo batizado como “A Família” leva a cabo uma ação de expropriação do carro-forte que saia carregado de dólares da loja de departamentos Bamberger’s, no distrito de Paramus. Dois guardas são feitos reféns e os revolucionários que pertenciam ao Exército de Libertação Negra (BLA, na sigla em inglês) e a Organização Comunista de 19 de Maio (M19CO) conseguem levar 105 mil dólares, após uma bem sucedida fuga e a liberação dos guardas. O comando guerrilheiro, do qual participam Mutulu Shakur, Marilyn Buck, Kuwasi Balagoon e outros revolucionários negros tem um objetivo claro, financiar a operação para libertar Assata Shakur.

Quase dois meses após a expropriação de Paramus, em 2 de novembro daquele ano, um novo operativo de “A Família” irá colocar em prática o plano de libertação de Assata. Os revolucionários que protagonizaram a ação sintetizam bem o cenário da luta armada revolucionária nos EUA em fins dos anos 1970, após uma década inteira de brutal repressão do FBI e do COINTELPRO que atingiu fortemente não apenas os panteras negras e o BLA, mas também a Weather Underground Organization (WUO) e as organizações revolucionárias de chicanos, porto-riquenhos e nativos americanos. O Dr. Mutulu Shakur, foi um integrante do Revolutionary Action Movement (RAM) e um dos fundadores da Republic of New Afrika (RNA) que se juntou aos ex-panteras na formação do BLA, se casou com Afeni Shakur em 1975 e foi padrasto de quem anos mais tarde viria a ser o maior ícone do rap nos EUA, Tupac Shakur. Sekou Odinga, havia se juntado a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU), fundada por Malcolm X, antes de se tornar uma liderança do Partido Pantera Negra em Nova York, depois participar da seção internacional do BPP liderada por Eldridge Cleaver na Argélia e finalmente aderir ao BLA. Marilyn Jean Buck foi uma poeta marxista e militante anti-imperialista que compôs o Comitê Organizador Fogo na Pradaria (PFOC, na sigla em inglês), primeiro ligada a WUO e depois a May 19th Communist Organization, sendo a única mulher branca a também participar organicamente do BLA. Silvia Baraldini, uma revolucionária ítalo-americana que participou ativamente da mobilização no caso Panther 21 e no apoio a organização revolucionária porto-riquenha Fuerzas Armadas de Liberación Nacional (FALN), foi também do PFOC e da M19CO. Mtyari Sundiata foi um integrante da Republic of New Afrika que aderiu ao BLA. 

Na data que entraria para a história política dos EUA como o “Dia da Libertação de Assata Shakur”, Odinga se passando por visitante e aproveitando o baixo nível de segurança da penitenciária consegue entrar no Clinton Correctional Facility for Women, em Nova Jersey, após localizar JoAnne Chesimard lhe passa uma arma e rendem os guardas prisionais usando pistolas, tomam uma van do Centro Correcional e conseguem escapar com Cleo, codinome usado para identificar Assata, que é caracterizada pela repressão como a alma do Black Liberation Army. Mutulu, Mtyari Sundiata e Marilyn Buck também estão presentes na ação, um segundo carro dirigido Silvia Baraldini ainda é usado na fuga após abandoarem a van e os guardas sequestrados. Assata é levada para um aparelho e vai permanecer por alguns meses clandestina em diversos locais do país até seguir em fuga para as Bahamas em 1980 e ser acolhida como exilada política pelo governo cubano oficialmente em 1984. Diversas demonstrações de solidariedade do movimento de libertação negra ocorrem nos EUA e um grande ato é realizado alguns dias após a ação de libertação de Assata com cerca de 5 mil manifestantes em Nova York carregando cartazes com a palavra de ordem “Assata Shakur é bem-vinda aqui”, demonstrando apoio a JoAnne e a reivindicação do BLA por uma nação negra independente.   

Assata Shakur desempenhou um papel importante no processo de reorganização do Exército de Libertação Negra que havia sido atingindo por uma brutal repressão após a intensa atividade armada que a organização desenvolveu entre 1971-72, mas foi a partir do episódio da sua prisão em 2 de maio de 1973, os sete julgamentos criminais contra ela que se seguiram até 1977 e a mobilização realizada pelo Comitê em Defesa de Assata Shakur, que JoAnne tornou-se uma figura pública nacionalmente conhecida. No incidente de 1973, que ocorreu quando um carro com integrantes do BLA foi parado pela polícia na autoestrada de Nova Jersey, Assata e o policial estadual James Harper foram baleados, Zayd Malik Shakur e o policial Werner Foerster morreram, Assata ficou ferida, sendo presa juntamente com Sundiata Acoli.

O BLA não era uma organização de tipo tradicional, era muito mais um conceito organizacional, com grupos armados que atuavam de forma compartimentada e com pouca coordenação entre si, sem uma liderança central. A formação do BLA remonta a dois fatores fundamentais da luta de libertação negra nos EUA, primeiro ao processo de radicalização de Malcolm X no fim de sua vida e a orientação política que deu contornos iniciais a noção de “nacionalismo negro revolucionário”, e segundo, as violentas lutas internas dentro do Partido Pantera Negra em 1971, cujo símbolo maior foi o bate-boca público entre Huey Newton e Eldridge Cleaver, mas que envolveram também a expulsão de Geronimo Ji-Jaga, então Vice-Ministro da Defesa do Partido, a briga entre o Comitê Central e o capítulo de Nova York no contexto do caso Panther 21, e os assassinatos dos panteras Robert Webb e Samuel Napler, que foram atribuídos as facções em luta no BPP.           

El-Hajj Malik Al-Shabazz, ou Malcolm X, a mais proeminente figura da luta negra nos EUA, ao lado de Martin Luther King Jr., havia rompido com a Nação do Islã (NOI) e a filosofia de Elijah Muhammad em 1964, ao se afastar da NOI da qual foi um eloquente porta-voz, fundou a Organização da Unidade Afro-Americana (OUAA) e coordenou um projeto político paralelo com Max Stanford, que havia fundado em 1962 o Movimento de Ação Revolucionária (RAM, na sigla em inglês), uma organização que mesclou o nacionalismo negro e a orientação marxista-leninista com forte influência maoísta, iniciando a construção das Guardas Negras como seu braço armado. Segundo Malcolm, a OUAA deveria ser uma frente ampla com atuação pública e o RAM a organização clandestina e armada para autodefesa do povo negro. O movimento de Malcolm para avançar no projeto de uma organização nacionalista negra revolucionária envolvia também Robert F. Williams, antigo líder da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), então exiliado em Cuba e depois na China maoísta, e que viria a se tornar presidente honorário da República da Nova África.

O projeto nacionalista nacionalismo negro revolucionário de Malcolm, Stanford e Williams, seria fortemente abalado com o assassinato do carismático líder muçulmano negro em 21 de fevereiro de 1965, que falsamente foi atribuído a NOI, mas que sempre teve por trás a CIA e o FBI. A morte de Malcolm foi um duro golpe para a luta de libertação negra nos EUA, mas a linha política do RAM terá sequência tanto no Partido Pantera Negra, quanto no Exército de Libertação Negra.

Fundado por Bobby Seale e Huey Newton em 15 de outubro de 1966 como Partido Pantera Negra para Autodefesa, o BPP teve uma ascensão meteórica. Em 1970, classificado como “a maior ameaça à segurança interna do país” pelo diretor do FBI, J. Edgar Hoover, o partido reunia milhares de militantes e apoiadores, com 250 mil leitores do jornal The Black Panther, quase 70 escritórios espalhados pelos EUA e mais de 60 programas comunitários de sobrevivência funcionando por todo o país que envolviam alimentação, saúde, educação, moradia, etc. A mobilização das massas negras marginalizadas e a política de unidade antifascista, multirracial e revolucionária com os demais setores oprimidos na América racista que se materializou na formação da “Frente Unida Contra o Fascismo” (UFAF), reunindo organizações de chicanos, porto-riquenhos, brancos pobres, povos originários e outros setores, alertava o governo dos EUA, que manteve uma política permanente de perseguição, prisão e assassinatos de lideranças, como do promissor presidente dos panteras em Illinois, Fred Hampton, 4 de dezembro de 1969. O partido, que entendia o povo negro como uma “colônia interna” dos EUA, também conseguiu um forte respaldo internacional de regimes socialistas como da China, de Cuba, do Vietnã e da Coreia Popular, além de manter uma seção internacional do partido baseada na Argélia (ver detalhes em O Manejo Correto de uma Revolução, Huey P. Newton, 2021, Coleção Panterismo).

A saída de Huey da prisão em 1970 e o processo de controle do partido pelo Comitê Central abrem também uma grave crise interna a partir de 1971, agravada em muito pelo alto e sofisticado nível de repressão do COINTELPRO, uma operação de guerra do FBI através de um programa ilegal e clandestino, cujo objetivo, segundo o próprio J. Edgar Hoover, era “expor, perturbar, desviar, desacreditar, neutralizar e eliminar” militantes e dirigentes do BPP.  O FBI produz centenas informações falsas e infiltrações, que somadas as divergências ideológicas e as lutas internas, ocasionam expurgos, proibição de novos membros e diversos problemas dentro da organização. É a soma da divergência entre Newton e Eldridge Cleaver, que acusou o Ministro da Defesa de desvios reformistas, e a crise entre capítulo de Nova York e o Comitê Central, onde as lideranças de NY acusam o CC de falta de apoio jurídico e financeiro para o caso Panther 21 e são acusados, por sua vez, de desvios reacionários e “nacionalistas culturais”, que vão colaborar com o racha entre as facções em luta e o surgimento do Black Liberation Army. 

A retórica revolucionária de Cleaver, que se desloca do exílio em Cuba para a Argélia, alegando falta de apoio do governo revolucionário da Ilha para a luta armada nos EUA, se soma ao trabalho de mobilização clandestina para a guerrilha urbana realizado por Geronimo Ji-Jaga, que era um experiente ex-militar condecorado do Vietnã e foi expulso por Huey do partido, além da liderança de Zayd Shakur, de Dhoruba bin Wahad e de Sekou Odinga, que retornou da Argélia na clandestinidade, possibilitam a formação da nova organização, que mesmo com uma estrutura mais descentralizada controla boa parte do antigo BBP em Nova York, alguns capítulos locais pelo país e dá início a um novo jornal, o Right On!.

Renegando, em certa medida, a liderança de Cleaver do exterior e o nome Exército de Libertação Afro-Americano que havia sugerido, mas conseguindo aglutinar também membros veteranos da luta negra radical do RAM e da RNA, além de ex-panteras e outros grupos negros, a primeira fase do BLA é marcada pela controversa liderança de Dhoruba bin Wahad e uma alto grau de violência e repressão. A guerrilha negra, atuando muitas vezes de forma coordenada com os radicais brancos da Weather Underground, responde à guerra racial da América contra o povo negro com assassinatos de policiais, expropriações e atentados em diversas partes dos EUA. A pesada repressão que se abate sobre o BLA e a WOU, induz ao trabalho cada vez mais coordenado entre as organizações revolucionárias, também surgem novos grupos armados como a M19CO, a partir da destruição da Weather Underground e com uma liderança feminina, além do polêmico Exército Simbionês de Libertação (SLA) entre 1973-75, as combativas Fuerzas Armadas de Liberación Nacional porto-riquenha, a partir de 1976, e a maoísta New World Liberation Front (NWLF), em 1977, que com outros grupos radicais menores mantém viva a opção pela luta armada revolucionária no coração da besta imperialista por toda a década de 1970, realizando dezenas e dezenas de atentados, expropriações e ações de propaganda armada. Surgem experiências de colaboração político-militar como “A Família” e o BLA vai se reinventando nesses anos sob a liderança de Mulutu Shakur, mantendo suas atividades armadas até 1981, quando a maioria dos seus combatentes estavam finalmente mortos, presos ou exilados. A luta armada nos EUA ainda se estenderia heroicamente até 1985 com a M19CO, a United Freedom Front (UFF) e ações pulverizadas de pequenos grupos revolucionários.

É dessa geração de revolucionários e revolucionárias que decidiram enfrentar o demônio yankee dentro da sua própria casa que Assata Shakur faz parte. Uma representante do mais avançado setor da luta de libertação negra nos EUA. Sua bem-sucedida fuga da prisão através da ação do comando guerrilheiro “A Família” em 1979 representou uma grande humilhação para a aperfeiçoada e brutal repressão da América racista. Vivendo exilada em Cuba sob proteção do governo socialista desde 1984, Assata Shakur é uma mulher negra que simboliza a luta revolucionária contra o racismo e o capitalismo, que ousou enfrentar o Império e por isso figura no topo da lista de terroristas mais procuradas pelo FBI desde 2013, com uma recompensa de U$ 2 milhões por sua captura.

A opção radical de JoAnne Deborah Byron, seu nome de batismo, pode ser sintetizada pela passagem da sua Carta ao Meu Povo, quando afirma que “revolucionários negros não caem do céu”, e completa dizendo que “somos criados por nossas condições” e “moldados na nossa opressão”. JoAnne nasceu em 16 de julho de 1947, no bairro pobre conhecido como South Jamaica, no Queens, em Nova York, mas passou parte da infância com seus avós em Wilmington, na Carolina do Norte, e retornou para Nova York, onde concluiu seus estudos e foi acolhida por sua tia materna, Evelyn A. Williams, uma ativista negra dos direitos civis.

Em 1967 foi presa pela primeira vez após protestos estudantis, e nesse mesmo ano, se casou com seu colega e ativista, Louis Chesimard. Mudou-se para Oakland, onde ingressou no Partido Pantera Negra e atuou nos programas de sobrevivência. Após se separar em 1970, voltou para Nova York onde assumiu um papel de liderança no capítulo do BPP no Harlem. A partir da influência da República da Nova Áfrika, organização revolucionária da qual Betty Shabazz, viúva de Malcolm, era uma integrante notável, e que levantou a reivindicação de uma nação negra independente na região do chamado “Cinturão Negro”, no sudeste dos EUA, JoAnne adotou a partir de 1971 o nome Assata Olugbala Shakur. Assata vem da tradição muçulmana na África Ocidental e significa “aquela que luta”, Olugbala é um nome yorubá que significa “amor pelo povo” ou “salvação”, Shakur significa “agradecido” e foi adotado como sobrenome por JoAnne pelo fato de ter sido adotada simbolicamente por El Hajj Sallahudin Shakur, um veterano muçulmano negro próximo a Malcolm X, pai biológico dos panteras que também aderiram ao BLA, Zayd Malik e Lumumba Abdul Shakur, que foi marido de Afeni, mãe de Tupac. O nome tem origem histórica em Muhammad ibn ‘Ali ‘Abd ash-Shakur, o último Emir de Harar na Etiópia (1856-1875). 

Absolvida em seis dos sete julgamentos que enfrentou, Assata engravidou de Kamau Sadiki em 1973, seu companheiro de BLA e também preso político, dando à luz ainda encarcerada a sua primeira e única filha, Kukuya Amala. Tratada barbaramente na prisão, foi condenada à prisão perpétua em 1977 por um júri racista em um julgamento tendencioso. Assata se definiu como “uma revolucionária negra”, que declarou “guerra aos ricos que prosperam com a nossa pobreza, aos políticos que mentem para nós com rostos sorridentes e a todos os estúpidos, robôs sem coração que protegem a eles e a sua riqueza”, se tornando um símbolo de resistência contra a América racista, cantada em músicas como “Rebel Without a Pause” do Public Enemy, “A Song for Assata” de Common e “Words of Wisdom” do seu afilhado Tupac Shakur, também foi tema de documentários e seu caso permanece com uma questão diplomática entre Cuba e os diferentes governos reacionários dos EUA.

Nesta antologia política que apresentamos aqui com novas traduções, cartas, documentos e entrevistas, Assata narra por suas próprias palavras a trajetória de uma prisioneira de guerra e exilada política que “defendeu e segue defendendo mudanças revolucionárias”, com o “fim da exploração capitalista, a abolição das políticas racistas, a erradicação do sexismo e a eliminação das políticas de repressão”, como afirmou em sua Carta ao Papa.

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Clóvis Moura, quilombagem e luta de classes https://revistabacuri.editorialadande.com/clovis/ Mon, 09 Dec 2024 23:02:13 +0000 https://revistabacuri.editorialadande.com/?p=125 Entendendo os quilombos como unidade básica de resistência e fenômeno contínuo durante os quase quatro séculos de escravismo no Brasil, que se articulava às diversas formas de luta contra o cativeiro, desde as insurreições nas cidades até o bandoleirismo, passando pelas reivindicações parciais e a ressignificação de elementos culturais, Clóvis Moura definiu o conceito de quilombagem como o conjunto das diferentes manifestações do protesto negro, cujo centro de rebeldia foram os quilombos. Partindo de uma interpretação marxista da escravidão como uma relação de produção que opunha escravos e senhores, povo negro e elite branca, enquanto classes antagônicas, a quilombagem como expressão dessa luta de classes que constituiu nosso país é um conceito-chave no pensamento do nosso autor.  A quilombagem é concebida então, a partir do “marxismo negro” de Moura, como um movimento intermitente que se reestruturava e se reproduzia historicamente, em processo permanente de negação radical da escravidão, que existiu durante o longo período escravagista e por todo o território brasileiro, desgastou o sistema de dominação e afundou suas bases econômicas, sociais e político-militares. Compreender a formação social brasileira e interpretar corretamente nossa realidade histórica é uma tarefa fundamental para a qual os estudos da obra do piauiense Clóvis Steiger de Assis Moura é indispensável. Nascido em 10 de julho de 1925, em Amarante, pequeno município no Piauí rodeado pelos rios Canindé, Mulato e Parnaíba na divisa com o Maranhão, Clóvis era o irmão do meio e único mulato de uma família de classe média e miscigenada, filho de mãe branca, Elvira Steiger, e pai negro, Francisco de Assis Moura. Seu bisavô pelo lado materno, Ferdinando vön Steiger-Münssingen, cidadão suíço e que teria sido um barão na Europa, se tornou fazendeiro no Brasil e senhor de escravos em Ilhéus, com influência política na região cacaueira da Bahia. Pelo lado paterno, Abidon Moura, avô de Clóvis e comerciante mulato vindo do Maranhão, era filho da negra Carlota com um senhor de engenho na zona da mata pernambucana, de quem teria sido escrava. Ainda criança, em 1935, Clóvis se muda com a família para Natal (RN), mesmo ano em que a capital norte-rio-grandense seria palco do Levante Comunista dirigido pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB). Estudando em uma escola de padres maristas, o Colégio Diocesano Santo Antônio, onde escutava pregações contra malvados comunistas e anarquistas que lutavam contra as falanges fascistas de Francisco Franco e queimavam igrejas e símbolos católicos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39), o jovem Clóvis Moura participou do Grêmio Cívico-Literário 12 de Outubro e dirigiu o pequeno jornal estudantil, O Potiguar, onde publicou seus primeiros artigos ainda com 14 anos de idade. Em 1941, a família Steiger-Moura se transfere para Salvador, mesmo ano em que o irmão mais velho de Clóvis, Carlitos, falece aos 17 anos, vítima de uma tuberculose. Em sua curta estada na capital baiana, Moura faz amizades com jovens intelectuais soteropolitanos e frequenta reuniões acadêmicas onde se discute sobre política e literatura, fazendo parte de um pequeno círculo inspirado pela chamada Academia dos Rebeldes, grupo do qual participaram destacados intelectuais comunistas como Jorge Amado e Edison Carneiro. Em 1942, por motivos de trabalho do seu pai, funcionário público de carreira e responsável pelo fisco, Clóvis se muda com a família para Juazeiro, na região do Vale do São Francisco e divisa da Bahia com Pernambuco, porém mantém sua rede de contatos formada na capital. Através dessas amizades é convidado para participar da Associação Brasileira de Escritores (ABDE) e começa a escrever artigos e poemas para a revista Caderno da Bahia e para o jornal comunista O Momento, editado pelo PCB baiano, ao qual se filia em 1945.       Em Juazeiro, Clóvis inicia o desenvolvimento de uma militância político-cultural e funda o jornal O Jacuba, enquanto estuda a teoria marxista e começa a desenvolver suas pesquisas sobre a questão negra no Brasil, trocando correspondências com intelectuais como Arthur Ramos, Caio Prado Júnior, Astrogildo Pereira, Edison Carneiro e outros.         Com o fim do Estado Novo em 1945, o PCB volta a legalidade e sob a liderança de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, tem um avanço considerável em sua popularidade, participando das eleições daquele ano e conseguindo eleger uma importante bancada de deputados, porém, a vida legal do partido logo seria interrompida com a ascensão ao governo do marechal fascista Eurico Gaspar Dutra. Em 1947, o registro do PCB, e logo depois, os mandatos pecebistas são cassados. Com o partido na ilegalidade, as candidaturas comunistas migram para legendas legais como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), agremiação proveniente da Esquerda Democrática da UDN que havia sido recém-fundada, e da qual João Mangabeira, tio de Clóvis, era um dos líderes. Moura se candidata ao legislativo estadual pelo PSB na Bahia, mas tem sua candidatura cassada em um episódio nunca muito bem esclarecido. Nesse mesmo período colabora com a revista Literatura, dirigida por Astrojildo Pereira e que contava em seu conselho editorial com Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Orígenes Lessa e outros importantes intelectuais. Em 1950, Clóvis participa como delegado do III Congresso Brasileiro de Escritores em Salvador e nesse mesmo ano, então com 25 anos, inicia uma nova etapa em sua trajetória, mudando-se para São Paulo, onde se integra à Frente Cultural do PCB, organismo do partido que reunia intelectuais como Caio Prado Júnior e Villanova Artigas, começando também sua carreira como jornalista profissional. O PCB nesse momento voltava a assumir uma linha revolucionária com o Manifesto de Agosto de 1950, assinado por Prestes em nome do Comitê Central, onde se afirma que “diante da violência dos dominadores, a violência das massas é inevitável e necessária, é um direito sagrado e o dever ineludível de todos os patriotas. É o caminho da luta e da ação, o caminho da revolução”. O partido vai manter uma forte oposição à primeira fase do segundo governo de Getúlio Vargas, organizando históricas greves operárias e construindo o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), além da defesa aberta da luta armada das massas e do impulsionamento das primeiras

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Entendendo os quilombos como unidade básica de resistência e fenômeno contínuo durante os quase quatro séculos de escravismo no Brasil, que se articulava às diversas formas de luta contra o cativeiro, desde as insurreições nas cidades até o bandoleirismo, passando pelas reivindicações parciais e a ressignificação de elementos culturais, Clóvis Moura definiu o conceito de quilombagem como o conjunto das diferentes manifestações do protesto negro, cujo centro de rebeldia foram os quilombos. Partindo de uma interpretação marxista da escravidão como uma relação de produção que opunha escravos e senhores, povo negro e elite branca, enquanto classes antagônicas, a quilombagem como expressão dessa luta de classes que constituiu nosso país é um conceito-chave no pensamento do nosso autor. 

A quilombagem é concebida então, a partir do “marxismo negro” de Moura, como um movimento intermitente que se reestruturava e se reproduzia historicamente, em processo permanente de negação radical da escravidão, que existiu durante o longo período escravagista e por todo o território brasileiro, desgastou o sistema de dominação e afundou suas bases econômicas, sociais e político-militares. Compreender a formação social brasileira e interpretar corretamente nossa realidade histórica é uma tarefa fundamental para a qual os estudos da obra do piauiense Clóvis Steiger de Assis Moura é indispensável.

Nascido em 10 de julho de 1925, em Amarante, pequeno município no Piauí rodeado pelos rios Canindé, Mulato e Parnaíba na divisa com o Maranhão, Clóvis era o irmão do meio e único mulato de uma família de classe média e miscigenada, filho de mãe branca, Elvira Steiger, e pai negro, Francisco de Assis Moura. Seu bisavô pelo lado materno, Ferdinando vön Steiger-Münssingen, cidadão suíço e que teria sido um barão na Europa, se tornou fazendeiro no Brasil e senhor de escravos em Ilhéus, com influência política na região cacaueira da Bahia. Pelo lado paterno, Abidon Moura, avô de Clóvis e comerciante mulato vindo do Maranhão, era filho da negra Carlota com um senhor de engenho na zona da mata pernambucana, de quem teria sido escrava. Ainda criança, em 1935, Clóvis se muda com a família para Natal (RN), mesmo ano em que a capital norte-rio-grandense seria palco do Levante Comunista dirigido pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) com o apoio do Partido Comunista do Brasil (PCB). Estudando em uma escola de padres maristas, o Colégio Diocesano Santo Antônio, onde escutava pregações contra malvados comunistas e anarquistas que lutavam contra as falanges fascistas de Francisco Franco e queimavam igrejas e símbolos católicos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39), o jovem Clóvis Moura participou do Grêmio Cívico-Literário 12 de Outubro e dirigiu o pequeno jornal estudantil, O Potiguar, onde publicou seus primeiros artigos ainda com 14 anos de idade.

Em 1941, a família Steiger-Moura se transfere para Salvador, mesmo ano em que o irmão mais velho de Clóvis, Carlitos, falece aos 17 anos, vítima de uma tuberculose. Em sua curta estada na capital baiana, Moura faz amizades com jovens intelectuais soteropolitanos e frequenta reuniões acadêmicas onde se discute sobre política e literatura, fazendo parte de um pequeno círculo inspirado pela chamada Academia dos Rebeldes, grupo do qual participaram destacados intelectuais comunistas como Jorge Amado e Edison Carneiro. Em 1942, por motivos de trabalho do seu pai, funcionário público de carreira e responsável pelo fisco, Clóvis se muda com a família para Juazeiro, na região do Vale do São Francisco e divisa da Bahia com Pernambuco, porém mantém sua rede de contatos formada na capital. Através dessas amizades é convidado para participar da Associação Brasileira de Escritores (ABDE) e começa a escrever artigos e poemas para a revista Caderno da Bahia e para o jornal comunista O Momento, editado pelo PCB baiano, ao qual se filia em 1945.      

Em Juazeiro, Clóvis inicia o desenvolvimento de uma militância político-cultural e funda o jornal O Jacuba, enquanto estuda a teoria marxista e começa a desenvolver suas pesquisas sobre a questão negra no Brasil, trocando correspondências com intelectuais como Arthur Ramos, Caio Prado Júnior, Astrogildo Pereira, Edison Carneiro e outros.        

Com o fim do Estado Novo em 1945, o PCB volta a legalidade e sob a liderança de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, tem um avanço considerável em sua popularidade, participando das eleições daquele ano e conseguindo eleger uma importante bancada de deputados, porém, a vida legal do partido logo seria interrompida com a ascensão ao governo do marechal fascista Eurico Gaspar Dutra. Em 1947, o registro do PCB, e logo depois, os mandatos pecebistas são cassados. Com o partido na ilegalidade, as candidaturas comunistas migram para legendas legais como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), agremiação proveniente da Esquerda Democrática da UDN que havia sido recém-fundada, e da qual João Mangabeira, tio de Clóvis, era um dos líderes. Moura se candidata ao legislativo estadual pelo PSB na Bahia, mas tem sua candidatura cassada em um episódio nunca muito bem esclarecido. Nesse mesmo período colabora com a revista Literatura, dirigida por Astrojildo Pereira e que contava em seu conselho editorial com Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Orígenes Lessa e outros importantes intelectuais.

Em 1950, Clóvis participa como delegado do III Congresso Brasileiro de Escritores em Salvador e nesse mesmo ano, então com 25 anos, inicia uma nova etapa em sua trajetória, mudando-se para São Paulo, onde se integra à Frente Cultural do PCB, organismo do partido que reunia intelectuais como Caio Prado Júnior e Villanova Artigas, começando também sua carreira como jornalista profissional. O PCB nesse momento voltava a assumir uma linha revolucionária com o Manifesto de Agosto de 1950, assinado por Prestes em nome do Comitê Central, onde se afirma que “diante da violência dos dominadores, a violência das massas é inevitável e necessária, é um direito sagrado e o dever ineludível de todos os patriotas. É o caminho da luta e da ação, o caminho da revolução”. O partido vai manter uma forte oposição à primeira fase do segundo governo de Getúlio Vargas, organizando históricas greves operárias e construindo o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), além da defesa aberta da luta armada das massas e do impulsionamento das primeiras Ligas Camponesas. É nesse período que o PCB tem papel preponderante nas revoltas camponesas em Porecatu, no norte do Paraná, em Capinópolis, no Triângulo Mineiro, e na região de Trombas e Formoso, em Goiás, onde sob a liderança de José Porfírio chegou a se formar um “território livre” com o povo em armas.

A família Moura também se transfere para São Paulo e segue com Clóvis para o interior do estado, ao mesmo tempo em que o marxista piauiense consolida sua carreira como “homem de imprensa” e tem grande circulação nos meios culturais e intelectuais paulistas. Em 1952, assume a condição de redator no jornal Última Hora, veículo da chamada “grande imprensa”, enquanto também é secretário de redação da Revista Fundamentos e redator-chefe do jornal Notícias de Hoje, ambas iniciativas jornalísticas ligadas à intelectuais e jornalistas do PCB, além de fundar com sua irmã mais nova, Merita Moura, a Revista Flama, em Araraquara. Nesse período, Moura iniciará uma forte relação de amizade e colaboração com Pedro Pomar (1913-1976), que também era jornalista no Notícias de Hoje.    

Como intelectual-jornalista, Clóvis Moura amplia sua produção para além da poesia e da crítica literária, diversificando seu campo de estudos e aprofundando o processo iniciado ainda na Bahia com suas primeiras pesquisas em história e sociologia sobre a questão negra no Brasil. Passando a colaborar com artigos também na Revista Brasiliense, cujo círculo intelectual pecebista ligado a Caio Padro Jr. e a Editora Brasiliense tensiona por uma renovação acadêmica a partir da teoria marxista, e concomitantemente, mantém uma relação crítica com a direção e algumas posições do PCB. O círculo caiopradiano exerce uma importante influência inicial sobre os estudos de Clóvis, que igualmente rejeita a tese sobre o caráter feudal da sociedade escravista brasileira, naquele momento afirmada pelo Partidão. Em 1952, a pesquisa para o livro Rebeliões da Senzala é concluída, rejeitando as críticas de Caio Prado Júnior, mas incentivado por Edison Carneiro, Moura que inicialmente tenta publicar o livro pela Brasiliense, conseguirá sua impressão por um selo editorial próprio, as Edições Zumbi, apenas em 1959, mantendo-se profissionalmente como redator nos jornais Diário da Noite e Diário de São Paulo. Realizando uma crítica dupla, tanto ao culturalismo antropológico de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e outros, quanto ao marxismo acadêmico e caiopradiano, que insistiam nas teses da passividade do negro ou na coisificação do escravo, Clóvis propõe, a partir do estudo sistemático da práxis negra, uma leitura da realidade brasileira em que o escravizado é um sujeito político, entendendo a contradição entre elite branca e povo negro como um conflito de classes definidor da formação social brasileira e do ethos nacional. A resistência negra em seus vários aspectos – políticos, econômicos e culturais – é interpretada como um processo histórico protagonizado pelo próprio escravizado, personagem principal das lutas que desgastaram e fizeram ruir as bases do escravismo como modo de produção.          

Mais tarde, Clóvis se aproximaria intelectualmente de Nelson Werneck Sodré (1911-1999), militar comunista e grande estudioso da realidade brasileira, cuja crítica e diálogo serviram para a segunda edição revisada de Rebeliões, e que estava também ligado ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que reunia intelectuais como Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira e Ignácio Rangel. Após publicar os livros de poesia O espantalho na feira (1961) e Argila da Memória (1962), Moura inicia o processo de revisão para a segunda edição aumentada do seu clássico livro, consegue publicar Âncora no Planalto, também de poemas, e seu ensaio de crítica literária Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha, em 1964, um pouco antes do golpe de Estado, fato que atrasaria a nova edição de Rebeliões para 1972, quando foi publicada com intermédio e prefácio de Werneck Sodré.  

Clóvis Moura e sua filha Soraya, em registro de 1963.

Desde sua chegada em São Paulo e o início do desenvolvimento mais sistemático de sua atividade intelectual-jornalística, Moura se relaciona cada vez mais com os círculos comunistas, sendo fichado pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) por conta da publicação da Revista Flama, ainda em 1952. Envolvo na luta interna e no intenso debate que se abateu sobre o PCB a partir do famoso relatório de Nikita Kruschev contra Josef Stalin apresentado ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, Clóvis que vinha radicalizando sua posição ao se afastar da influência do grupo de Caio Padro, toma partido pelo setor liderado por Mauricio Grabois e Pedro Pomar, que critica o revisionismo alinhado a nova direção do PC soviético e se rebela contra a maioria da direção prestista do PCB. Aprovando uma nova linha baseada na tese da “transição pacífica ao socialismo”, o setor majoritário da direção do partido torna pública a chamada Declaração de Março de 1958 e consolida seu poder no V Congresso de 1960, que se seguirá com a mudança de nome para Partido Comunista Brasileiro, para fins de registro eleitoral do PCB, além de novos estatutos e programa onde não constam a definição ideológica como marxista-leninista ou referências ao internacionalismo proletário e ao comunismo como objetivo final.

A luta interna ocorre em meio à crise política desatada pela renúncia de Jânio Quadros em 1961, com seu vice João Goulart sendo vetado de tomar posse pela cúpula militar, mas com o golpismo acabando por vencido pela “Rede da Legalidade”, liderada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, que garantiu a posse de Jango. A maioria revisionista da direção do PCB decide pela expulsão da minoria do Comitê Central e dos signatários da chamada “Carta dos 100” (Em defesa do Partido). Esse mesmo setor, vai liderar a nova formação do Partido Comunista do Brasil em 1962, que usando a sigla PCdoB e reivindicando a continuidade do partido fundado em 1922, publicará o manifesto intitulado “Aos comunistas e amigos do Partido”, e ao qual Clóvis Moura se ligará politicamente.      

Com o golpe militar-fascista de 1964, apoiado diretamente pelo imperialismo norte-americano, o PCdoB que faz uma defesa do caminho revolucionário e da luta armada desde a sua fundação, assume a linha maoísta da guerra popular prolongada e uma estratégia guerrilheira exclusivamente a partir do campo, sintetizada depois no documento “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil”, de 1969. Enviando militantes para a preparação militar na China socialista e diferindo seu acionar político de outras organizações armadas como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que à despeito do reconhecimento do campo como área estratégica para a luta revolucionária e da guerrilha urbana como meio tático de viabilização, desenvolveram suas ações armadas principalmente nas cidades, o PCdoB, ainda a partir de 1967, passou a enviar combatentes para a região do Rio Araguaia, principalmente na área do Bico do Papagaio no norte de Goiás (hoje Tocantins) e sul do Pará. As Forças Guerrilheiras do Araguaia (FOGUERA) comandadas pelo veterano Maurício Grabois e divididas nos Destacamentos A, B e C ao longo da Transamazônica e da serra das Andorinhas, respondiam ao objetivo estratégico da formação de um exército guerrilheiro que avançaria a partir de colunas de combatentes para cercar as cidades e foram impulsionadas ao mesmo tempo que a União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP), formada por diversos núcleos camponeses nos lugarejos da região. Clóvis Moura, que não chega a ser um quadro militar ou um dirigente do partido, como seu amigo Pedro Pomar, atua no apoio clandestino aos guerrilheiros do Araguaia e o pensamento de Mao Tsé-Tung, que serve como guia para o PCdoB, também influi em sua obra tanto no que diz respeito à centralidade da questão agrária, como na leitura maoísta sobre a materialidade da raça e no entendimento da questão racial como uma questão de classe.

Em 1972, o trabalho clandestino de mobilização popular e preparação da luta armada dos comunistas na região do Araguaia é descoberto pela repressão, que já havia conseguido destroçar boa parte das organizações armadas de guerrilha urbana. São organizadas grandes operações militares para a destruição das Forças Guerrilheiras do Araguaia, que apesar de resistir heroicamente às primeiras investidas da repressão, entre 1972 e 1974 é completamente exterminada. Com uma brutal repressão sobre camponeses e combatentes, além do comandante Maurício Grabois, são mortos dezenas de guerrilheiros como Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, Helenira “Preta” Resende, André Grabois e outras dezenas de filhos e filhas do povo que lutavam contra a ditadura militar fascista. 

Após os massacres perpetrados pela repressão no Araguaia, as diversas operações da ditadura que envolveram diretamente cerca de 7.200 militares contra menos de 80 guerrilheiros, e a própria existência da guerrilha no Bico do Papagaio, são abafadas pela censura do regime. O PCdoB, que sofreu rachas anteriores com a Ala Vermelha (PCdoB-AV) e PCR (Partido Comunista Revolucionário), mas que havia incorporando um importante setor da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), é debilitado também com assassinatos de dirigentes nas cidades e se abre uma luta interna acerca do balanço da derrota. O Comitê Central do partido se dividiu sobre o documento “Gloriosa jornada de luta” e enquanto Pedro Pomar e outros, como Ângelo Arroyo, um dos poucos sobreviventes Araguaia, fazem a defesa da continuidade da luta armada contra a ditadura e uma dura autocrítica para a correção dos erros, outro setor ligado a Elza Monnerat e João Amazonas, que já se encontrava refugiado na Albânia socialista, defende a revisão das teses da guerra popular e da luta armada, mas o debate é abruptamente interrompido pela Chacina da Lapa. Após infiltração e delações de traidores, em uma operação do DOI-CODI, militares invadem a casa localizada no bairro da Lapa, em São Paulo, no dia 16 de dezembro de 1976, onde se reunia o Comitê Central do partido. Pomar, Arroyo e João Batista Drummond são assassinados e os demais membros da direção são presos. Amazonas toma as rédeas do partido e reorganiza o PCdoB do exterior, realizando a chamada “VII Conferência Nacional” em 1979, na Albânia.

Comprometido com o trabalho clandestino de apoio ao PCdoB realizado entre o início da Guerrilha do Araguaia até a Chacina da Lapa, período marcado por sua amizade e afinidade política com Pedro Pomar, Clóvis Moura seria acusado de ligações com o jornal A Classe Operária e fichado pelo DEOPS de São Paulo, que monitorava suas atividades literárias e o convocou para depor em 1970, não tendo comprovado seu envolvimento com a esquerda armada. A despeito da brutal repressão do regime, nosso autor mantém sua vida política legal e algum nível de atuação institucional, segue se dedicando principalmente ao trabalho intelectual-jornalístico como secretário de redação e crítico literário no Correio Paulistano, até 1969, quando trabalha também nos jornais O Momento e O Escritor e torna-se sócio honorário da Academia Piauiense de Letras (APL), nesse mesmo ano.

Em 1972, após haver conseguido publicar a segunda edição ampliada de Rebeliões da Senzala, exerce o cargo de diretor de redação do jornal A Folha de São Carlos, onde publica crônicas sob o heterônimo “Sparkenbroke”. A partir de 1973, inicia intensos contatos com o CEAO, o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, participando por intermédio deste, do Colóquio sobre Negritude na América Latina realizado em 1974, em Dacar, no Senegal, então sob o governo do poeta e intelectual Léopold Senghor. Ao voltar da África, Moura abre uma polêmica com Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e do Instituto Nacional do Negro, criticando o que chamou de “aristocratização da negritude” em oposição ao projeto socialista de libertação dos povos colonizados e o protagonismo das “massas negras” que defendia. Em julho de 1975, funda o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA) com o objetivo de estudar a história afro-brasileira, mantém relações institucionais com a UNESCO e conta com a colaboração de intelectuais como Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Jacob Gorender e outros. Nesse mesmo período realiza conferências nos EUA e também mantém uma interessante interlocução com Décio Freitas, autor de Palmares – A guerra dos escravos,e quemfaz o intermédio para a edição em espanhol do livro Sociologia de la práxis, publicado no México em 1976, ano em que também publica O preconceito de cor na literatura de cordel.

Até 1979, Clóvis, que segue aprofundando suas pesquisas e desenvolvendo a produção intelectual que ficaria conhecida como sociologia da práxis negra, publica também dezenas de artigos em diversos meios. Em 1977, é editado o livro O negro: de bom escravo a mau cidadão? e no ano seguinte A Sociologia posta em questão, volta a publicar poesia com Manequins Corcundas, em 1979. No contexto da luta pela anistia dos presos políticos, exilados e banidos pela ditadura militar publica Sacco e Vanzetti: o protesto brasileiro pela Brasil Debates e organiza a publicação do documento histórico Diário da Guerrilha do Araguaia, pela Alfa-Ômega, ambas ligadas ao PCdoB, que nesse momento apesar de uma importante atuação no Movimento Contra a Carestia e apoio às massivas greves operárias que ocorriam, passava por mais um processo de luta interna que envolvia o debate e a publicização das questões relacionas a luta armada no Araguaia, após a reorganização do partido sob as rédeas de João Amazonas. Clóvis que era redator do jornal Movimento e ligado ao setor do PCdoB que se organizava em torno da Editora Brasil Debates e do jornal, se relaciona com o grupo que ficou conhecido como Dissidência do PCdoB e que ao sair do partido inicia o processo de construção do que mais tarde seria o clandestino Partido Revolucionário Comunista (PRC), depois diluído no PT. Clóvis, embora prossiga em sua filiação ideológica marxista, se distancia da militância partidária e passa a apoiar o processo de formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, o MNUCDR, fundado em julho de 1978 no bojo da luta contra os assassinatos de trabalhadores negros e reunindo diversos setores da luta antirracista no Brasil, e que em 1979, passaria a se chamar apenas MNU.

Na década de 1980, Clóvis Moura se desliga do trabalho jornalístico profissional e passa a se dedicar ao trabalho como historiador e acadêmico, simultaneamente ao processo de “abertura política” e definhamento da ditadura militar publica a terceira edição Rebeliões da Senzala, em 1981, pela Editora Ciências Humanas, e no ano seguinte, é agraciado com o título de doutor com notório saber concedido pela Universidade de São Paulo (USP). Nesse período também publica por editoras como Brasiliense, Ática e Global uma sequência de livros paradidáticos como Os quilombos e a rebelião negra (1981), Brasil: raízes do protesto negro (1983), Quilombos: resistência ao escravismo (1987), Sociologia do negro brasileiro (1988) e História do negro brasileiro (1989), que são bem aceitos pelo público, contam com diversas edições e circulação nacional, consagrando nosso autor como “historiador dos quilombos”, que à despeito de sua trajetória de embates com a academia e pesquisador autodidata firma suas relações com universidades como UNICAMP e UFPI, além de fundações de apoio à pesquisa. Mantendo-se como um simpatizante do PCdoB, apoia em 1988 a fundação da União de Negros pela Igualdade (Unegro), organização colateral do partido. Os livros Imprensa Negra (1984), O Negro no Mercado de Trabalho (1986) e o poemário História de João da Silva (1986), também desse período, além das dezenas de artigos e a quarta e definitiva edição de Rebeliões da Senzala (1988), marcam uma década de intensa escrita e grande dedicação à produção historiográfica.

Nos anos 1990, um Clóvis Moura já idoso, mas incansável em sua militância intelectual e um apoiador da luta sem-terra, publica As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990), Dialética Radical do Brasil Negro, pela Editora Anita Garibaldi em 1994, e novamente volta à poesia com Flauta de Argila (1995), além de A República de Palmares e o seu significado sócio-político (1995) e Bahia de Todos os Homens, última coletânea de poemas que publica em 1997. Nos últimos anos de sua vida ainda presta contribuições relevantes com Sociologia política da guerra camponesa de Canudos: da destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST, publicado pela Editora Expressão Popular em 2000, organiza o livro Os quilombos na dinâmica social do Brasil (2001), que é seguido de A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro (2003) e conclui seu Dicionário da Escravidão no Brasil, publicado postumamente em 2004, assim como, Duelos com o Infinito, que reúne seus poemas não publicados em vida. Clóvis Moura falece aos 78 anos, em 24 de dezembro de 2003, na cidade de São Paulo, tendo suas cinzas jogadas ao rio de sua infância, o Parnaíba, e deixando um legado fundamental para pensar e entender o Brasil.

Nosso autor, que se consagrou como um dos mais importantes intelectuais brasileiros no século XX publicando quase 30 livros, manteve até o fim suas convicções socialistas e a coerência com a luta antirracista que transformou em ofício e compromisso de vida. Moura, que a partir da sistematização pioneira da práxis negra contra o sistema escravagista, definido em seu primeiro período como escravismo pleno, e depois, como escravismo tardio na segunda metade do século XIX, decifrou a formação do capitalismo racial brasileiro, onde as relações de produção baseadas na escravidão se conectam em linha histórica com a modernização conservadora do pós-abolição, as políticas eugenistas de branqueamento do país, a permanência do latifúndio e o regime de superexploração do trabalho. Clóvis desnudou os problemas centrais de um Brasil desigual e brutal contra as maiorias, pensou nossa realidade sempre sob o prisma de um “marxismo negro”, com uma produção intelectual genuína que não se furtou às polêmicas e nunca fugiu da necessária batalha de ideias. A defesa de um processo revolucionário de longo prazo a partir da periferia do capitalismo, com o protagonismo dos povos colonizados, é marca indelével da trajetória de Clóvis Moura, pensador fundamental para a transformação radical e necessária do nosso país.

* Artigo publicado como apresentação do livro Os quilombos e a rebelião negra e da Coleção Quilombagem.

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